Inteligência financeira versus sigilos fiscal e bancário: atualização do big processo inquisitório

Artigo do sócio Luiz Eduardo Cani, publicado no Boletim Trincheira Democrática do Instituto Baiano de Direito Processual Penal.

 

 

 

  1. Persecução penal sem direito a sigilo

O compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira (RIF) entre órgãos fiscais e agências de persecução penal está no centro de um dos mais relevantes debates: os limites do sigilo bancário e do sigilo fiscal. Trata-se de um duplo desdobramento dos entendimentos firmados pelo STF acerca da licitude do compartilhamento de dados em dois outros casos: (a) compartilhamento de dados bancários com a Receita Federal (RFB) independente de autorização judicial (RE 601.314[1]); e (b) compartilhamento das representações fiscais da RFB com a polícia e o Ministério Público para a persecução dos crimes previdenciários (ADI 4.980)[2] e para a persecução dos crimes tributários em geral (RE 1.055.941[3]).

Como se pode perceber, em um primeiro momento, o STF autorizou o fisco a obter dados bancários sigilosos sem autorização judicial, depois autorizou a compartilhar os dados bancários e fiscais sigilosos sem autorização judicial. Desde então, agindo de ofício, pode a RFB atuar como agência de persecução penal sem integrar o rol de agências de segurança pública (art. 144 da CRFB) para produzir elementos pré-investigatórios que serão utilizados na persecução penal sem direito a sigilo.

  1. Atualização do big processo inquisitório

Do big processo inquisitório formado a partir do agenciamento das atividades de inteligência de segurança pública na persecução penal fundido ao vasto conjunto de dados obtidos a partir do processo eletrônico (Cani; Morais da Rosa, 2023), passou-se à integração da inteligência financeira.

A atividade de inteligência inicialmente introduzida na persecução penal era efetuada apenas pelas agências de segurança pública com a finalidade de obter a notitia criminis. Isso, por si só, implicou em um reposicionamento da autoridade policial em relação ao conhecimento do fato potencialmente criminoso, antecipando o início da persecução penal com suspeitas generalizadas e violadoras da presunção de inocência.

A introdução das atividades de inteligência financeira, contudo, implicou em mais uma alteração profunda na persecução penal: abriu-se um novo domínio das atividades.

Se as agências de segurança pública não podem, sem fundada suspeita ou autorização judicial, intervir em direitos fundamentais dos investigados (rectius: “alvos”, uma vez que inexiste crime a investigar, mas apenas a suspeita da prática do crime), os órgãos fiscais não precisam afastar nenhum sigilo para ter acesso aos dados fiscais dos alvos.

A integração dos órgãos fiscais ao “combate à lavagem de dinheiro” (vid. Melchior, 2020) não é mero acaso.

A desvinculação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) da estrutura do Ministério da Fazenda e consequente vinculação ao BACEN (art. 2º da Lei 13.974/2020) não altera essa constatação, uma vez que o órgão fica responsável pelo recebimento das comunicações de atividades suspeitas – sem incidência dos sigilos bancário e fiscal – e elaboração dos relatórios de inteligência que servirão para a persecução penal.

  1. Rumo a um Judiciário que se exonera da própria jurisdição na tutela dos direitos fundamentais (?)

A discussão acerca do compartilhamento dos RIFs chegou a um ponto aparentemente paradoxal com a criação de um entendimento non sense pelo STJ: o Tema 990 autoriza o compartilhamento de ofício e sem autorização judicial, mas não permite o compartilhamento mediante requerimento da polícia ou do Ministério Público diretamente à RFB ou ao COAF (RHC 83.233, RMS 42.120, HC 816.944 e RHC 147.707).

Obviamente, o posicionamento equivale a dizer que a reserva de jurisdição é necessária, mas, se o judiciário não quiser, pode ignorá-la. Os sigilos valem, mas só de vez em quando. Uma cláusula de arbitrariedade – não de mera discricionariedade.

Ao julgar o AgRg na Rcl 61.944, a 1ª Turma do STF, por unanimidade, decidiu que a cooperação com outros órgãos é da natureza do COAF, de modo que o compartilhamento a requerimento direto da polícia e do Ministério Público é também lícito, independente de autorização judicial.

Portanto, o STF decidiu afastar a reserva de jurisdição de maneira geral e irrestrita. Trata-se de uma atualização do gesto soberano (cf. Schmitt, 2006; Agamben, 2007), por meio do qual o judiciário subtrai-se da jurisdição para depois declarar que não existe fora da jurisdição.

Obviamente, o COAF é incompatível com os sigilos. A pretexto de acabar com o financiamento ao terrorismo – qual terrorismo? em qual país? –, parece que se está disposto a renunciar a todo e qualquer direito fundamental.

O entendimento do STF gera uma autorização indevida para a fishing expedition diretamente pelo COAF e, de maneira reflexa, possivelmente também para a RFB. Isso porque valida a circulação de dados sobre suspeitas de crimes antes da existência de qualquer indício de materialidade e autoria, desde que o compartilhamento ocorra de ofício. Vale destacar, por fim, a insuficiência da limitação da atuação da RFB pelo STJ aos casos com pertinência temática da atuação – apenas em relações jurídicas tributárias ou aduaneiras – e finalidade fiscal do procedimento de apuração (AgRg no RHC 167.539).

 

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

 

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no RHC 167.539. Rel. Min. Messod Azulay Neto, j. em 12 dez. 2023. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202202109208&dt_publicacao=15/12/2023. Acesso em: 04 jul. 2024.

 

CANI, Luiz Eduardo; MORAIS DA ROSA, Alexandre. No processo penal combo, o exercício da ampla defesa é brinde. Consultor Jurídico, São Paulo, 03 fev. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-fev-03/limite-penal-processo-penal-combo-exercicio-ampla-defesa-brinde. Acesso em: 05 abr. 2024.

 

MELCHIOR, Antonio Pedro. Guerra contra a lavagem de dinheiro: críticas à persecução penal patrimonial no Brasil. Boletim Trincheira Democrática, a. 3, n. 11, pp. 13-14, 2020.

 

SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

 

SIMÕES, Pedro. COAF, inteligência e lavagem: o que esperar de 2023. Boletim do IBCCRIM, v. 363, 2023.

 

Luiz Eduardo Cani – Pós-Doutorando e Doutor em Ciências Criminais na PUCRS. Professor convidado nas Especializações em Ciências Penais da PUCRS, Direito Penal e Processo Penal da PUCPR e Direito Processual Penal Contemporâneo Aplicado da UCS. Advogado criminalista.

[1] Leading case do Tema 225.

[2] A constatação da relação com a ADI 4.980 foi percebida por Simões (2023).

[3] Leading case do Tema 990.