Artigo da sócia Elcemara A. Zielinski Cani, publicado no Empório do Direito.
Síntese do caso Bărbulescu vs. Romania
Quais os limites para o monitoramento de comunicações dos funcionários pelo empregador? Foi justamente o cerne da controvérsia envolvendo o trabalhador romeno Bogdan Mahai Bãrbulescu e seu empregador.
A empresa privada empregadora do Sr. Bãrbulescu monitorou as conversas do funcionário, no período de 5 e 13 de julho de 2007, em uma conta profissional criada a pedido da empresa e decidiu demiti-lo com base nas transcrições das mensagens. Segundo a empresa, nas quarenta e cinco páginas de transcrições haviam mensagens de cunho pessoal, trocadas entre o empregado e sua noiva e seu irmão, o que fere as normas internas da empresa.
Inconformado, o trabalhador contestou sua demissão perante o Tribunal do Condado de Bucareste, cidade onde vive. O tribunal local, por sua vez, entendeu que a decisão da empresa estava dentro dos limites da legalidade e tratava-se de mero monitoramento dos serviços prestados pelo funcionário.
O Sr. Bãrbulescu decidiu, então, acionar a Tribunal Europeu dos Direitos do Homem para apurar a conduta do Estado Romeno, sob a alegação de que a decisão do Tribunal de Bucareste viola o artigo 8 Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pois o conteúdo das transcrições abrange a sua vida privada e sigilo das correspondências.
Na decisão do pedido 61.496/08, a Corte decidiu, por maioria de votos, que as autoridades romenas agiram dentro das suas responsabilidades, alcançando equilíbrio na resolução da demanda. Ouvindo as partes na forma da lei e permitindo que empresa agisse dentro dos seus poderes disciplinares.[i]
Contudo, impende ressaltar os critérios de avaliação da licitude do monitoramento, apontados na decisão, os quais passaram a ser conhecidos e, por isso, podem ser exigidos em casos futuros:
(a) o empregado deve ser notificado previamente, de maneira clara, acerca da possibilidade de ter as correspondências e outras comunicações monitoradas pelo empregador – a notificação deve indicar se o monitoramento é do conteúdo das comunicações (intrusivo) ou apenas do fluxo (não intrusivo);
(b) a extensão do monitoramento e o grau de intrusão na privacidade do empregado, de modo que é preciso distinguir claramente entre (i) monitoramento de fluxo de comunicações e monitoramento de conteúdo das comunicações, (ii) monitoramento de todas as comunicações ou apenas uma parcela, (iii) limitação temporal ou monitoramento durante toda a contratualidade e (iv) pessoas que atuam no monitoramento e/ou acessam o conteúdo.
(c) se há razões legítimas que justifiquem o monitoramento das comunicações e o acesso do conteúdo das comunicações, pois métodos menos invasivos devem ser priorizados sempre que possível;
(d) se há possibilidade de monitorar as comunicações com métodos menos intrusivos do que acessando diretamente o conteúdo das comunicações dos empregados;
(e) as consequências do monitoramento para o empregado interessado e o uso dos resultados pelo empregador, mormente se o objetivo pretendido com o monitoramento foi alcançado (p. ex. a demissão de empregado monitorado por suspeita de prática de crime contra o empregador); e
(f) se o empregado foi provido com salvaguardas adequadas e suficientes, especialmente nos casos de monitoramento intrusivo (com acesso ao conteúdo das comunicações).
Poder punitivo x poder de monitoramento do empregador
Frequentemente se pensa que os empregadores têm poderes sobre os empregados por força da remuneração paga pelo trabalho desempenhado. Trata-se de uma concepção quase naturalizada, segundo a qual a fiscalização e a punição seriam inerentes às relações de trabalho.
Haveria, portanto, uma bifurcação no poder dos empregadores sobre os empregados, ou, no mínimo, duas formas distintas de exercício do poder. A fiscalização, ou monitoramento, adviria do interesse dos empregadores na escorreita execução do contrato de trabalho pelos empregados. A punição, ou disciplina, por outro lado, adviria do fato de que os empregadores assumem os riscos da atividade econômica e, com isso, seria apenas um desdobramento da direção empresarial.
Nesse sentido, o poder disciplinar do empregador é bastante discutido – e discutível. Embora a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) deixe claro em seu artigo 2° que “considera-se empregador toda empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”[ii], não há, por um lado, reconhecimento da existência de um poder punitivo, e, por outro, tampouco limites estabelecidos para coibir os excessos advindos dessa pretensa modalidade lícita de poder.
Na doutrina, há posições divergentes sobre o tema. A então juíza do trabalho Débora Maria Lima Machado defende um poder disciplinar sob a justificativa de que o empregador pode administrar suas atividades da forma mais satisfatória possível:
[…] sendo o empregador aquele que assume os riscos da atividade econômica, nada mais justo que, na administração desta atividade, venha a dirigi-la de forma tal a obter o resultado que lhe pareça mais satisfatório possível […] de nada adiantaria ao empregador traçar as diretrizes normativas e regulamentares do seu direito de direção geral e contínuo sobre a atividade do empregado no curso do pacto laboral se estas, uma vez descumpridas ou inobservadas, não levassem à consequências práticas ativas, por parte daquele, de fazer valer a direção projetada e estabelecida. [iii]
Como bem observado por Aldacy Rachid Coutinho, aquele posicionamento simplesmente deduz o poder disciplinar do poder de direção, em um mero raciocínio lógico-dedutivo[iv]. Contudo, diverge integralmente desse posicionamento, negando legitimidade a qualquer defesa de um poder fundado em relações de servidão e de monopólio dos corpos dos trabalhadores
A aplicação de castigos ou punições ao empregado é absolutamente incompatível com um direito do trabalho pautado pelos princípios democráticos e voltado para a tutela e proteção do hipossuficiente, devendo ser suprimida. A ameaça de punição apenas encobre a primazia do capital sobre o trabalho.[v]
É possível monitorar, mas empregados não são objetos
Enfim, é necessário notar que, se o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem reconhece aos empregadores um poder de monitoramento (o qual também pode ser chamado de poder de fiscalização ou de vigilância), isso se dá na condição de parte de um contrato de trabalho, não na condição de proprietário dos empregados[vi]. Há um abismo entre essa interpretação e a interpretação tradicional. Na linha de raciocínio da Corte europeia, pode-se facilmente advogar que os empregados são titulares do mesmo direito de monitoramento em relação a seus empregadores. Ora, a execução do contrato nos estritos limites é de interesse de ambas as partes, não fosse assim, não existiria contrato.
Por fim, não há dúvidas de que o empregador tem poder de coordenar as atividades de sua empresa e dirigir o trabalho de seus funcionários. Tal poder não pode ser exercido contrariando ou violando direitos dos empregados. Tampouco pode exceder os limites. Os efeitos desse entendimento certamente serão cada vez mais notados, sobretudo em razão do trabalho em plataformas e para aplicativos, na medida em que se pode monitorar inúmeros e minuciosos detalhes da vida dos trabalhadores.
Notas e Referências
[i] CONSELHO da Europa. Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Quarta seção. Caso Bărbulescu vs. Romania (pedido nº 61496/08). Pres. András Sajó, j. em 12 jan. 2016. Disponível em: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-159906. Acesso em: 14 out. 2021.
[ii] BRASIL. Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em 14 out. 2021.
[iii] MACHADO, Débora Maria Lima. O Poder Disciplinar do Empregador e o Controle Jurisdicional. Possibilidade de dosagem da pena pelo Juiz. In: CARVALHO, Amílton Bueno de. (Org.). Revista de Direito Alternativo, n. 2. São Paulo: Editora Acadêmica, 1993, p. 166.
[iv] COUTINHO, Aldacy Rachid. Poder Punitivo Trabalhista. São Paulo: LTr, 1999, p. 111.
[v] COUTINHO, Aldacy Rachid. Poder Punitivo Trabalhista. São Paulo: LTr, 1999, p. 236.
[vi] “O direito de propriedade é sobre os bens, não implicando a dominação sobre as pessoas, devendo ser exercido na sua função social.” COUTINHO, Aldacy Rachid. Poder Punitivo Trabalhista. São Paulo: LTr, 1999, p. 236.