Invasões neoliberais no direito do trabalho

Artigo da sócia Elcemara A. Zielinski Cani e do sócio Luiz Eduardo Cani, publicado na Revista Profanações.

RESUMO: Neste artigo analisa-se algumas invasões do neoliberalismo no direito do trabalho. O objetivo geral é compreender as expressões do neoliberalismo no direito do trabalho. Os objetivos específicos são contextualizar o neoliberalismo, destacar alguns efeitos e analisar as manifestações nas relações de trabalho. O método de abordagem foi o indutivo e o método de procedimento foi o monográfico, com pesquisa bibliográfica em fontes secundárias.

Palavras-chave: Relações de trabalho. Liberalismo. Reforma trabalhista.

NEOLIBERAL INVASIONS ON LABOR LAW

ABSTRACT: In this article it is analyzed some invasions of neoliberalism in labor law. The general objective is to understand the expressions of neoliberalism in labor law. The specific objectives are to contextualize neoliberalism, highlight some effects and analyze the manifestations in labor relations. The approach method was inductive and the procedure method was monographic, with bibliographic research in secondary sources.

Keywords: Work relationships. Liberalism. Labor reform.

1         Introdução

Desde o estouro da bolha imobiliária nos Estados Unidos da América tem-se propagado o discurso da “crise econômica de proporções globais”[1]. As medidas e pacotes de resgate econômico que supostamente visam recuperar a “saúde financeira” sempre incluem modificações na legislação trabalhista. Nessa direção, muitos países passaram por incisivas reformas trabalhistas desde o fim da primeira década do Século XXI.

Nesse caldo cultural as análises da legislação trabalhista podem ser mais profícuas se feitas à luz das reflexões filosóficas acerca do neoliberalismo. Assim, neste artigo analisa-se alguns aspectos históricos e conceituais do neoliberalismo, bem como, a influência exercida na economia e nas relações de trabalho por meio das constantes alterações no direito do trabalho. O objetivo geral é compreender as expressões do neoliberalismo no direito do trabalho. Os objetivos específicos são contextualizar o neoliberalismo, destacar alguns efeitos e analisar as manifestações nas relações de trabalho.

O texto se justifica tanto pela tendência contemporânea de reformas que alteram o estatuto jurídico dos trabalhadores e reduzem os “encargos” para os tomadores de serviços, cuja expressão máxima é resumida no peculiar modo de subjetivação chamado de “sujeito-empresa” ou “empresário de si”.

Trata-se de um estudo exploratório, com pesquisa pura, realizado em fontes secundárias pelo método de abordagem indutivo e pelo método de procedimento monográfico.

2         Conceituação de neoliberalismo

Em um mundo cada vez mais globalizado e regido pelo capitalismo, bem como pela incidência de constantes discursos sobre “crises econômicas mundiais”, o termo neoliberalismo tem se tornado um assunto cada vez mais discutido e difundido. Muito se tem falado e debatido sobre temas como a livre concorrência, livre iniciativa, liberdade mercadológica, regulação econômica e técnica de governo para regular e gerir a economia.

Em que pese muito já se tenha ouvido falar nos termos que, em tese, regem o neoliberalismo, existem relevantes divergências com relação ao nascimento do termo e a exatidão do seu conceito.

Para alguns estudiosos, o liberalismo clássico apenas evoluiu e sofreu mutações, até se chegar ao neoliberalismo que é difundido na atualidade. Um exemplo de posicionamento com viés evolucionista é o adotado por Amauri Mascaro Nascimento:

O neoliberalismo, na sua concepção inicial, caracterizado por um Estado intervencionista que reage contra o individualismo da Revolução Francesa de 1789, na versão contemporânea a de um Estado liberal regulador e de economia de mercado, valoriza a negociação coletiva, procurando desregulamentar o direito do trabalho, substituir a lei pelos convênios coletivos de trabalho, para que os próprios interessados encontrem, diretamente, soluções para os conflitos trabalhistas com amplitude do princípio da liberdade sindical e da autonomia coletiva dos particulares[2].

Embora essa posição seja e importante para o presente estudo, tendo em vista que foi um dos mais conhecidos estudiosos do Direito do Trabalho no Brasil, deve-se salientar que outros estudiosos, de outras áreas do conhecimento e de outros ramos do Direito, buscaram conceito e origem diversas para o termo neoliberalismo.

Um exemplo de conceito diverso é o trazido por Pierre Dardot e Christian Laval. Segundo os autores, o conceito de neoliberalismo é muito mais complexo do que apenas uma versão moderna do liberalismo clássico, passando necessariamente pela razão governamental explicada nas obras de Foucault:

A tese defendida por esta obra é precisamente que o neoliberalismo antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados. A racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação. O termo racionalidade não é empregado aqui como um eufemismo que nos permite evitar a palavra ‘capitalismo’. O neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de um capitalismo desimpedido de suas referências arcaizantes e plenamente assumido como construção histórica e norma geral de vida. O neoliberalismo pode ser definido como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência[3].

Trata-se, para Dardot e Laval, de uma razão de mundo que perpassa relações sociais, epistemologias e formas de vida.

Outro conceito importante do termo neoliberalismo, foi o desenvolvido por Maurizio Lazzarato, que, partindo de uma análise foucaultiana, define o neoliberalismo como um modo de governo, onde a liberdade não é um valor natural:

O neoliberalismo é, segundo Foucault, um modo de governo que consome a liberdade, e que, para se fazer, deve primeiro produzi-la e organizá-la. A liberdade não é para os neoliberais um valor natural que preexiste à ação governamental équal se trataria de garantir o exercício (como no liberalismo clássico), mas é algo que o mercado tem necessidade para poder funcionar[4].

De modo ainda mais direto, para Lazzarato o neoliberalismo é uma política:

Recolocado na história da propriedade, o neoliberalismo é uma política cujo sentido e finalidade principal são anular essas conquistas políticas para reduzir, em todo lugar possível, as formas de socialização e de mutualização da riqueza e da propriedade, e para lhe impor uma ‘desproletarização’ que passa pelo acesso individual à propriedade. Desproletarização pelo acesso individual à propriedade privada: aí está um dos instrumentos mais poderosos da despolitização do neoliberalismo[5].

Com base nos conceitos trazidos pelos estudiosos supracitados, pode-se afirmar que o neoliberalismo pode ser entendido como uma forma de governo, com ideologia própria, que se estrutura e organiza para suprir a liberdade individual e tem como principal característica a concorrência, seja ela entre indivíduos ou entre grandes corporações.

Nesse sentido, a regulação da economia é a espinha dorsal da razão neoliberal. Sendo o trabalho o motor da economia, a regulação das dinâmicas de produção, acumulação e circulação de riquezas, matérias jurídicas, passa necessariamente pelo direito do trabalho.

3         Nascimento e contexto histórico

3.1       O nascimento do neoliberalismo

Para romper com a falsa sensação de que o neoliberalismo é apenas uma continuidade ou uma evolução do liberalismo clássico é imprescindível delimitar o que se entende por liberalismo clássico. Assim é possível compreender a diferença entre as vertentes do liberalismo que surgiram a partir das rupturas históricas, e principalmente compreender o desenrolar temporal do presente estudo.

Nesse sentido, Marcelo Lira Silva defende que esse tipo de liberalismo encontra sua racionalidade no contratualismo clássico:

O Estado liberal-burguês nasce da desagregação política, econômica e sócio-cultural do ancien régime – que tem seu início com a Magna Carta de João Sem Terra em 1215 e que desemboca na Revolução Gloriosa na Inglaterra, Revolução Americana em 1776 e Revolução Francesa em 1789 –, e encontra sua justificativa racional no livre acordo estabelecido por indivíduos igualmente livres, que convencionam constituir um estado político e civil fundado nos direitos naturais. Nesse sentido, a doutrina dos direitos naturais, o contratualismo e a doutrina liberal estão umbilicalmente ligados uns aos outros, pois o pressuposto de uma e de outra doutrina, bem como do próprio contratualismo é a concepção atomista da sociedade, segundo a qual a sociedade é o resultado consensual de indivíduos singulares[6].

Para Dardot e Laval, a versão clássica do liberalismo conforme conceituado anteriormente deixou de existir devido a rupturas internas, principalmente no tocante aos aspectos doutrinários. E também sucumbiu porque não foi capaz de incorporar as evoluções empresariais e as novas formas de competição que as acompanhavam[7].

Nesse sentido, compreende-se que o liberalismo não tinha uma base sólida, com fundamento teórico e estrutura doutrinária suficiente para suprir a necessidade de organização e regulação do novo modelo econômico que surgiu no século XIX.

Daí porque alguns, como Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, afirmam que o neoliberalismo sufocou o primeiro liberalismo e, assim, o fez sucumbir:

O liberalismo, como referido e todos sabem, nunca foi grande coisa, tanto que sistematicamente vinha denunciado, no caso dos países periféricos, porque não se cumpria com o mínimo prometido. Não matava, contudo, a esperança: algo sobrava para sonhar; para viver. Agora, com prefixo neo, para não deixar dúvida que se trata de algo vário, o neoliberalismo faz sucumbir o liberalismo, isto é, deixa claro que este não pode, na essência, sobreviver[8].

Outros estudiosos também tentaram encontrar uma definição e uma origem para o neoliberalismo, a exemplo de Enoque Ribeiro dos Santos, para quem o neoliberalismo é apenas um retrocesso do capitalismo que existia em meados do século XIX:

Os direitos dos trabalhadores encontram-se atualmente severamente abalados pela hegemonia da chamada política neoliberal, que nada mais é do que um retrocesso ao capitalismo vigorante em meados do século XIX. Criou-se, na verdade, uma situação de exclusão social de populações inteiras, inimaginável para os autores do Manifesto Comunista. Marx e Engels, com efeito, em sua análise do capitalismo, haviam partido do pressuposto de que o capital sempre dependeria do trabalho assalariado, o que daria aos trabalhadores unidos a força necessária para derrotar o capitalismo no embate final da luta de classes. Esse pressuposto revelou-se totalmente falso. No final do século XX, o que se verificou, em todas as partes do mundo, é que a massa trabalhadora havia se tornado um insumo perfeitamente dispensável no sistema capitalista de produção[9].

Apesar das divergências conceituais e acerca do nascimento do neoliberalismo, há um ponto de concordância nas teorias apresentadas: a maioria dos autores considera o neoliberalismo um fenômeno distinto do liberalismo clássico.

3.2       Surgimento do termo “neoliberalismo”

Compreender o surgimento do neoliberalismo é uma tarefa que demanda esforço. Tanto porque poucos estudiosos dedicaram-se a buscar e concatenar os fatos históricos de forma organizada, quanto devido à complexidade do tema.

Uma contribuição imprescindível é a de Dardot e Laval, os quais fizeram uma genealogia do neoliberalismo, e para tanto, iniciaram partindo dos eventos que ocasionaram a ruptura do liberalismo clássico:

A crise do liberalismo é também uma crise interna, o que é esquecido de bom grado quando se assume a tarefa de fazer a história do liberalismo como se se tratasse de um corpo unificado. A partir de meados do século XIX, o liberalismo expõe linhas de fratura que vão se aprofundando até a Primeira Guerra Mundial e o entreguerras. A tensão entre dois tipos de liberalismo, o dos reformistas sociais que defendem um ideal de bem comum e o dos partidários da liberdade individual como fim absoluto, na realidade nunca cessou. Essa dilaceração que reduz a unidade do liberalismo a um simples mito retroativo constitui propriamente essa longa ‘crise do liberalismo’ que vai dos anos 1880 aos anos 1930 e que pouco a pouco vê a revisão dos dogmas em todos os países industrializados onde os reformistas sociais ganham terreno. Essa revisão, que as vezes parece conciliar-se com as ideias socialistas sobre a direção da economia, forma o contexto intelectual e político do nascimento do neoliberalismo na primeira metade do século XX[10].

Para os autores, as tensões se intensificaram e as rupturas internas do liberalismo clássico foram inevitáveis. Assim, destacam a primeira guerra mundial e o período entreguerras como marco temporal das principais rupturas, dando início as grandes crises econômicas, especialmente a crise de 1930, conhecida como a grande depressão:

A primeira Guerra Mundial e as crises que vieram depois dela apenas aceleraram uma revisão geral dos dogmas liberais do século XIX. O que fazer com as velhas imagens idealizadas da livre troca, quando todo equilíbrio social e econômico parece abalado? As repetidas crises econômicas, os fenômenos especulativos e desordens sociais e políticas revelavam a fragilidade das democracias liberais. O período de crises múltiplas gerava uma ampla desconfiança em relação a uma doutrina econômica que pregava liberdade total aos atores no mercado, O laissez-faire foi considerado ultrapassado, até mesmo no campo dos que reivindicavam o liberalismo. Afora um núcleo de economistas universitários irredutíveis, aferrados à doutrina clássica e essencialmente hostis à intervenção do Estado, cada vez mais autores esperavam uma transformação do sistema liberal capitalista, não para destruí-los, mas para salv,á-los. O Estado parecia o único em condições de recuperar uma situação econômica e social dramática. De acordo com a fórmula proposta por Karl Polanyi, a crise dos anos 1930 soou a hora de um ‘reencastramento’ do mercado em disciplinas regulamentares, quadros legislativos e princípios morais[11].

A crise originada pela ruptura do liberalismo clássico foi o marco inicial de uma reestruturação, que viria a se concretizar por meio de reformas, com o objetivo principal de amenizar os efeitos devastadores da crise iniciada em 1929 com a “grande depressão”.

3.3       New deal

No momento que a crise da década de 1930 assolou os Estados Unidos da América, medidas extremas precisaram ser tomadas para amenizar seus efeitos devastadores.

A solução adotada foi a implementação de um programa político chamado de New Deal[12]ue segundo Guilherme Dray, tinha por característica basilar a adoção de uma série de reformas que objetivavam o ajuste da economia:

Na sequência da crise de 1929, que lançou os EUA numa tremenda recessão, com mais de 1/4 da população ativa desempregada, com falências de bancos e de empresas, o novo Presidente então eleito, Franklin Roosevelt, lançou o New Deal, programa político destinado a recuperar a economia que implicou um conjunto significativo de reformas. É nesta fase, nomeadamente, que são aprovados, o National Industrial Recovery Act, destinado a promover a recuperação da indústria; o Emergency Banking Act, que procurou garantir o saneamento do setor bancário; o Agricultural Adjustment Act, que teve em vista regular a produção agrícola; e o Home Owner’s Refinancing Act, que teve como objetivo evitar a perda de casas próprias hipotecadas. Neste ambiente social e político tornou-se claro, também que importava apostar na negociação coletiva e pôr termo à agressividade que grassava nas indústrias, que opunha sindicatos e empregadores e que travava o crescimento econômico[13].

O New Deal foi um marco histórico importante, pois foi a partir dele que surgiram os novos conceitos de liberalismo, além de ser o primeiro conjunto de reformas legislativas significativos desde o surgimento do liberalismo clássico.

3.4       Liberalismo clássico x social liberalismo x neoliberalismo

A partir do New Deal, surgiu um novo conceito de liberalismo, chamado por alguns de “novo liberalismo”. Diferente do liberalismo clássico, o novo liberalismo era mais consciente das necessidades econômicas e sociais e emprestava alguns fundamentos do socialismo a fim de salvar o modelo capitalista liberal[14].

O marco temporal da distinção entre o liberalismo clássico e o novo liberalismo é explicado por John Maynard Keynes. É daí que surge a expressão liberalismo keynesiano. Nesse sentido, os filósofos Dardot e Laval explicam como ocorreu essa conexão:

O ‘novo liberalismo’ repousa sobre a constatação da incapacidade dos dogmas liberais de definir novos limites para a intervenção governamental. Em nenhum outro lugar lê-se melhor essa incapacidade dos dogmas antigos do que no pequeno ensaio de John Maynard Keynes cujo título já é por si só uma indicação do espírito da época: O fim do “Laissez-Faire”. Se Keynes se tornará mais tarde o alvo preferido dos neoliberais, não devemos nos esquecer que o keynesianismo e o neoliberalismo compartilham as mesmas preocupações durante algum tempo: com salvar do próprio liberalismo o que é possível do sistema capitalista? Esse questionamento interessa a todos os países, com variações notáveis conforme o peso da tradição do liberalismo econômico. Obviamente, a moda estava à procura de uma terceira via entre o puro liberalismo do século anterior e o socialismo, mas seria um engano imaginar essa ‘terceira via’ como o ‘justo meio’. Na realidade, essa procura adquire todo sentido quando a reinserimos no âmbito da questão central da época: sobre que fundamentos deve-se repensar a intervenção governamental?[15]

Um ponto interessante sobre o “novo liberalismo”, é o fato de ele passar a ser chamado de liberalismo keynesiano, por solicitação do próprio Keynes após a publicação do ensaio “O Fim do Laissez-Faire”. No ensaio, Keynes defendia que o laissez-faire era um dogma simplista e que o liberalismo não poderia mais encontrar sua base nos fundadores da economia liberal clássica, especialmente Adam Smith. Esse liberalismo defendido por Keynes visava controlar a economia para evitar a anarquia social e política[16].

A diferença entre o liberalismo clássico, o neoliberalismo e o liberalismo keynesiano é percebida basicamente nas entrelinhas dos seus dogmas e o lapso temporal de existência das vertentes liberais.

O liberalismo clássico era calcado basicamente nas estruturas do capitalismo e tinha como pressuposto principal a livre regulação do mercado, tal como pregava Adam Smith. Sobreviveu até a primeira guerra mundial e a partir das suas rupturas surgiu um novo liberalismo.

Esse novo liberalismo, repousava sobre a incapacidade de adaptação as mudanças do liberalismo clássico e tinha como característica uma maior consciência das necessidades econômicas e sociais.

A partir do novo liberalismo, surgiu o liberalismo keynesiano, que pregava o fim do Laissez-Faire e defendia que o liberalismo não podia mais ter seus fundamentos pautados nas teorias de Adam Smith.

3.5       Colóquio de Walter Lippmann

A transição do liberalismo keynesiano para o neoliberalismo também é incerta. Alguns estudiosos afirmam que o neoliberalismo nasceu com a criação da sociedade de Mont-Pèlerin, posição atacada por Dardot e Laval:

A criação da Sociedade Mont-Pèlerin, em 1947, é citada com frequência, e erroneamente, como o registro de nascimento do neoliberalismo. Na realidade, o momento fundador do neoliberalismo situa-se antes, no Cóloquio Walter Lippmann, realizado durante cinco dias em Paris, a partir de 26 de agosto de 1938, no âmbito do Instituto Internacional de Cooperação Intelectual (antecessor da Unesco), na rue Montepensier no centro de Paris. A reunião de Paris distingue-se pela qualidade de seus participantes, que, na maioria, marcarão a história do pensamento e da política liberal dos países ocidentais após a guerra, quer se trate de Friedrich Hayek, Jacques Rueff, Raymond Aron, Wihelm Röpke, quer se trate de Alexander von Rüstow[17].

Segundo esses autores, o Colóquio de Walter Lippmann trouxe à baila discussões que deram início a refundação da teoria liberal, sendo a primeira tentativa de criação de uma rede internacional de divulgação do neoliberalismo. A partir de então foram feitos investimentos no meio acadêmico para sedimentar a nova concepção[18].

Outro ponto destacado pelos autores é objetivo principal do Colóquio de Lippmann, fundamental para assumir o marco temporal do nascimento do neoliberalismo:

Sobretudo, essa junção dos neoliberais ocultou um dos aspectos principais da virada que se deu na história do liberalismo moderno: a teorização de um intervencionismo propriamente liberal. Era precisamente isso que trazia à luz o Colóquio Walter Lippmann. Nesse sentido, este último não é somente um registro de nascimento, mas um elemento revelador[19].

A definição do lapso temporal estabelecido por Dardot e Laval para o nascimento do neoliberalismo é marco importante. É a partir dele que surge a possibilidade de definir as diretrizes que o Colóquio de Lippmann deu para o futuro do neoliberalismo.

Em sua essência, essas diretrizes definidas a partir do Colóquio de Lippmann, encaminharam as políticas governamentais para uma série de mudanças, as quais foram cruciais para definir e moldar o neoliberalismo até que se tornasse o modo de governo que conhecemos hoje.

Nesse sentido, Dardot e Laval explicam que a introdução das transformações almejadas pelo Colóquio de Lippmann se deu essencialmente por meio das leis:

Para Lippmann, a nova governamentalidade é essencialmente judiciária: mais do que curvar-se à forma de administração da justiça em toda a sua extensão e todos os seus procedimentos, ela cumpre uma operação integralmente judiciária em seu conteúdo e seu alcance. A oposição simplista entre intervenção e não intervenção do Estado, tão pregnante na tradição liberal, impediu a compreensão do papel efetivo do Estado na criação jurídica e inibiu as possibilidades de adaptação. O conjunto de normas produzidas pelos costumes, pela interpretação dos juízes e pela legislação, com a garantia do Estado, evolui por um trabalho constante de adaptação, por uma reforma permanente que faz da política neoliberal uma função essencialmente judiciária[20].

O fato referido pelos autores supracitados é de extrema relevância, pois, é através das leis que a razão governamental neoliberal intervém na regulação econômica. Dessa forma, é possível compreender a forma como o neoliberalismo se difundiu e tomou corpo.

Entender a escolha da via jurídica como privilegiada para a efetivação do neoliberalismo é o ponto de partida para visualizar os efeitos da política neoliberal a partir do Colóquio de Lippmann.

4         Efeitos gerais do neoliberalismo

Após o Colóquio de Lippmann, a razão governamental denominada neoliberalismo difundiu-se pelo mundo. Com a incidência cada vez maior da política neoliberal, alguns efeitos dessa prática passaram a ser mais visíveis.

Para Dardot e Laval, a partir dos anos 1980 foi possível notar com maior clareza a razão neoliberal na forma de governar, especialmente com os governos de Margaret Thacher e de Ronald Reagan, referidos por muitos autores como primeiros governos neoliberais da atualidade[21].

Em um primeiro momento, a intenção dos governos era programar a economia para exercer a livre concorrência e aplacar os efeitos das crises. Para alcançar os objetivos almejados foi adotada uma série de medidas:

O programa político de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, imitado por um grande número de governos e continuado pelas grandes organizações internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, apresenta-se primeiro como um conjunto de respostas a uma situação que se considera ‘ingerível’. Essa dimensão propriamente reativa é a patente no relatório da Comissão Trilateral, intitulado The Crisis of Democracy, um documento-chave que mostra a consciência da ‘ingovernabilidade’ das democracias compartilhadas por muitos dirigentes dos países capitalistas. Os especialistas convidados a formular seu diagnóstico em 1975 constataram que os governantes eram incapazes de governar em razão do excessivo envolvimento dos governados na vida política e social [22].

O aumento da importância do Fundo Monetário Internacional (FMI), em meados dos anos 1980, teve um papel de destaque na difusão do neoliberalismo como razão governamental, pois foi a partir da adesão, por países chamados de “primeiro mundo”, às regras estabelecidas pelo FMI que os países chamados de “terceiro mundo” tiveram que aderir ao organismo para manter alguma credibilidade perante seus credores. Conduzindo os países “subdesenvolvidos” à adoção de novas políticas de gestão da economia e contribuindo para a difusão da nova razão governamental[23].

O que ocorreu a partir de então foi a difusão e fortalecimento do sistema capitalista, onde o neoliberalismo encontra um terreno fértil para propagação, principalmente através da liberação financeira e globalização tecnológica.

Os efeitos dessa expansão são sentidos principalmente no tocante a adoção de políticas sociais, culminando em acumulação de capital por parte de grandes empresas:

O fortalecimento do capitalismo financeiro teve outras consequências importantes, sobretudo sociais. A concentração de renda e patrimônio acelerou-se com a financeirização da economia. A deflação salarial traduziu um poder maior dos detentores dos capitais, o que lhes permitiu atrair um acréscimo importante de valor, impondo seus critérios de rendimento financeiro à toda esfera produtiva e fazendo as forças de trabalho competirem em escala mundial[24].

No campo das relações de trabalho, esses efeitos são sentidos em grande escala, não só pela constante retirada de direitos e endurecimento das regras concorrenciais, mas também pelo endividamento em massa dos trabalhadores. Consequência do achatamento salarial trazido pelas políticas neoliberais e da facilitação massiva de acesso a crédito bancário, sem liquidez dos endividados para saldar as dívidas contraídas.

Nesse sentido, Reginaldo Melhado menciona os eventos que causaram os efeitos supracitados:

A mundialização da economia representa principalmente isto, portanto: o trabalho com sua face atomizada e atemorizada de um lado e o capital como colosso transnacional, de outro, fundidos dialeticamente. Nascem neste contexto as novas técnicas de gerenciamento da produção e de controle social do trabalho. As relações industriais do paradigma fordista cedem seu lugar à japonização – ou toyotização – da empresa moderna, gerando novas relações sociais próprias a um fim de século em que a escola keynesiana foi superada pelo monetarismo neoclássico, o capital-dinheiro ganhou virtualidade absoluta – vagando como um errante especulador cibernético pelo planeta –, os intercâmbios moldaram mercados consumidores mundiais à sua imagem e semelhança, e os ciclos produtivos se fracionaram em escala mundial, atomizando o trabalho e alterando dramaticamente a correlação de força entre as classes sociais em conflito e disputa[25].

Ainda sobre o posicionamento de Reginaldo Melhado, as transformações ocorridas com o advento do neoliberalismo tem impacto maior nas transformações ocorridas no campo do direito do trabalho:

Funcionando a todo vapor, esta enorme caldeira de transformações despeja a força de seu influxo também sobre as teorias jurídicas. Seu combustível são novos paradigmas pós-fordistas de gerenciamento da produção, o mito da concorrência – que se internacionalizou e radicalizou, mas ao mesmo tempo é mera contrafação ideológica –, a desregulamentação, a flexibilização, os cânones do ‘consenso de Washington’, o desemprego estrutural…

Nenhum outro campo a violência desta vaga transformadora irrompe com tanta força como no direito do trabalho, que passa a ser repensada no seu âmago: sua natureza tutelar é posta na alça de mira do neoliberalismo. Novos paradigmas hão de ser forjados para viabilizar o funcionamento da economia dos tempos da mundialização[26].

Em que pese os efeitos sejam sentidos em todas as esferas cotidianas, é nas relações de trabalho que impacto tem maior relevância, pois, é o trabalho a engrenagem que move a economia e consequentemente tem maior incidência de regulação estatal.

É através das legislações trabalhistas que a razão neoliberal molda a supostamente livre concorrência, retira os pressupostos do bem-estar social e se sobressai nas entrelinhas do capitalismo cada vez mais latente.

5         Expressões do neoliberalismo na legislação trabalhista

O neoliberalismo tem diversas implicações, como citando anteriormente, interagindo com diversos campos da vida cotidiana, principalmente no tocante a economia.

Para interagir com a vida cotidiana e regular a economia, possibilitando a gestação das populações, o neoliberalismo necessita modificar os métodos de governo. E para concretizar suas mudanças e colocar em prática a sua razão governamental, alguns instrumentos são utilizados.

Dentre esses instrumentos de regulação econômica, as relações de trabalho são, notoriamente, o campo que sofre maior impacto. É a partir da regulação das normas trabalhista e direita sociais dos trabalhadores que os pressupostos neoliberais têm retorno mais rápido.

Para compreender melhor as implicações do neoliberalismo nas relações de trabalho atuais é necessário entender como a razão governamental foi aplicada pelos governos abertamente neoliberais, pois as decisões acerca das relações trabalhistas com intuito de regulamentar a economia não são atitudes tomadas apenas na atualidade.

Nesse sentido, Maurizio Lazzarato afirma que desde o século XIX a tendência da legislação trabalhista é a mesma, bem como as manifestações nas relações de trabalho:

Ao fim do século XIX, delineava-se uma tendência clara que ia neste sentido: leis sobre os acidentes de trabalho na França e na Alemanha, legislação sobre o tempo de trabalho, leis sobre a aposentadoria dos trabalhadores etc. A diferença notável em relação aos séculos XIX e XX é que, na época, as derrotas políticas que os movimentos operários não deixaram de sofrer eram acompanhadas de ‘progressos’ nos direitos sociais (leis sobre os horários, salários, aposentadorias, acidentes do trabalho, etc.). Enquanto, hoje, as derrotas políticas são acompanhadas por uma regressão nas conquistas sociais. A nova composição de classe ainda é incapaz de impor novos direitos, enquanto ela está em vias de perder o conquistado anteriormente[27].

A partir da ascensão dos governos neoliberais ao poder, como citado anteriormente, algumas medidas foram tomadas com intuito de regulamentar e reformar as leis trabalhistas. Um movimento que se iniciou na Europa.

As principais medidas tomadas foram uma série de reformas com intuito de retirar direitos, alavancar a economia e flexibilizar as relações de trabalho.

Corroborando com esse raciocínio, Sidnei Machado faz um apanhado, relatando e organizando os eventos ocorridos a partir do ano de 1980 que constituíram o movimento reformista:

É lugar comum assinalar que as reformas no Direito do Trabalho estão associadas a fatores distintos que movem questões centrais da economia e da sociedade e são oriundos da organização do capital e das formas de exploração do trabalho, num contexto de financeirização da economia no ambiente da globalização neoliberal.

As reformas no Direito do Trabalho no panorama europeu se apresentam como mutações que se localizam no panorama amplo de “reformas” do Estado Social que está na ordem do dia desde os anos 1980, movimento que se dá em várias ondas. A última vaga reformista tem como referência a crise de 2008 e é verificada nos países da Europa central, assim como na América do Norte e na América Latina.

Com suas motivações de enfrentamento do desemprego, de modernizar as leis do trabalho ou, ainda, de medidas para enfrentar as crises, as tendências de reformas guardam grandes similaridades entre os diversos países. Porém, no plano mais teórico das ideias sobre o Direito do Trabalho, há muitas bifurcações e as instituições do trabalho de cada país são distintas em trajetórias e reações.

As últimas reformas do Direito do Trabalho no cenário europeu se apresentam dentro da perspectiva de reformas em tempos de crise econômica, com a adoção de medidas de forte flexibilidade e desregulação de direitos, com rupturas centrais da regulação do trabalho. Há similaridades também nos programas adotados do ponto de vista de seus conteúdos, mas em todos os países se caracterizam por uma forte onda de desregulação orientada por uma política econômica ultraliberal[28].

Desse modo é possível compreender que a onda de reformas com intuito de remodelar as relações de trabalho é um movimento abrangente, que se estendeu posteriormente para outros países.

Nesse mesmo sentido, Reginaldo Melhado explica algumas outras situações que impactam e moldam as relações de trabalho, especialmente no tocante aos paradigmas organizacionais:

Rompendo com estes paradigmas organizacionais – depois desenvolvidos pelos fordismos –, a chamada globalização econômica resultou em dois fenômenos importantíssimos para as relações de trabalho. Por um lado, acarretou a descentralização dos ciclos produtivos, gerando sistemas de interconexão de atividades empresariais – o conceito de empresa-rede, a terceirização, a reconcentração – baseados em pequenas e microempresas e até mesmo no trabalho independente de profissionais ou consultores (self-employed). Além das novas concepções de gerenciamento de produção, aparecem novas formas de prestação de serviço viabilizadas pelo avanço do conhecimento informático, com atividades profissionais realizadas dentro do domicilio. O produto da força de trabalho – o trabalho, portanto – em um simples passageiro do modem[29].

As manifestações neoliberais chegaram ao Brasil, assim como foram incorporadas em todo o mundo. Apenas cabe salientar uma peculiaridade, pois no período em que o neoliberalismo se consolidava na Europa, o Brasil vivia a época do regime militar. O final da década de 1980 foi marcada pela derrocada da ditadura civil-militar e subsequente promulgação de uma nova Constituição fundada nos preceitos do Estado de bem-estar social.

O que se buscava a época era a refundação do Estado e a afirmação de direitos fundamentais, com o objetivo de inibir as violações dos direitos humanos ocorridas nas duas décadas anteriores.

Em que pese a nova Constituição promulgada em 1988 tenha os fundamentos basilares fundados nas questões sociais e garantias fundamentais, não passou incólume aos influxos neoliberais. Nesse sentido, o jurista Jorge Luiz Souto Maior faz referência ao texto constitucional, expondo especialmente os pressupostos neoliberais:

O fato é que a Constituição de 1988 representou uma espécie de hiato na linha regressiva imposta aos direitos trabalhistas desde 1964, mas, o ponto de vista concreto, ao menos, no período imediatamente seguinte, o da década de 90, nada se alterou realmente neste aspecto da retração de direitos trabalhistas, por dois motivos principais: primeiro, porque pouca relevância historicamente se deu aos preceitos constitucionais ligados ao Direito do Trabalho, no sentido de atribuir caráter normativo às previsões constitucionais na área dos Direitos Sociais; e, segundo, porque a Constituição foi logo abandonada pelos trabalhadores e acabou sendo dominada por uma leitura neoliberal, como se verá adiante. Lembre-se de que do ponto de vista da história mundial, verificada na parte I deste volume, já se estava vivenciando o neoliberalismo e a introdução deste ideário no Brasil estava travada pela preocupação interna de superar a ditadura militar e os trabalhadores constituíam a força política capaz de mobilizar a sociedade nessa empreitada, não havendo o ambiente propício, portanto, para impor aos trabalhadores o efeito direto e imediato do pensamento neoliberal da eliminação de Direitos Sociais[30].

Como colocado por Souto Maior, as manifestações do neoliberalismo presente na Constituição de 1988 não produziram efeitos imediatos nas relações de trabalho, pois o foco no momento era a reconstrução do Estado e a consolidação da democracia.

Os postulados imbricados no bojo da Constituição Federal foram se manifestando e aos poucos, principalmente a partir do início dos anos 1990 e com a ascensão do governo de Fernando Henrique Cardoso:

Um dos primeiros fatos que marcam, ainda que indiretamente o governo FHC, ao menos do ponto de vista do Direito do Trabalho, é o fato de que, em 1° de fevereiro de 1995, toma posse na Presidência do TST, José Ajuricaba da Costa e Silva, que havia sido um dos mais frequentes autores de artigos publicados na Revista LTr desde o final da década de 80, corroborando a linha de flexibilização das leis do trabalho, como forma de atender as exigências determinadas pela crise econômica, e, com isso, contribuindo decisivamente ao processo de desmonte da proteção jurídica trabalhista alcançado pela Constituição de 1988.

[…]

Assim, defende, abertamente, a flexibilização da legislação trabalhista por meio da adoção de uma ampla negociação coletiva e a adoção de mecanismos extrajudiciais de resolução de conflitos, como forma de superação da crise econômica [31].

Como início das flexibilizações da legislação trabalhista, com intuito de aplacar os efeitos da crise, as relações de trabalho no Brasil passaram a sofrer mutações. Várias foram às alterações feitas na legislação trabalhista, culminando fatidicamente com a reforma promulgada em 2017 sob o governo de Michael Temer, bem como, com a Medida Provisória 936/2020, que foi editada no início da pandemia de Coronavirus e posteriormente foi convertida na Lei número 14.020/2020.

Os eventos sociais e as trocas naturais de governo, cada um com suas peculiaridades e com decisões próprias, culminaram com a transição de uma razão governamental de bem-estar social para um método cada vez mais liberal.

As mutações que caracterizam a transição de um governo social para um governo neoliberal seguem uma lógica, que, aos olhos de Dardot e Laval, visam fragmentar a classe trabalhadora e facilitar a retirada de direitos:

Os sindicatos e a legislação trabalhista foram os primeiros alvos dos governos que adotaram o neoliberalismo. A dessindicalização na maioria dos países capitalistas desenvolvidos teve causas objetivas, sem dúvida, como a desindustrialização e a deslocalização de fábricas em regiões e países com baixos salários, sem tradição de lutas sociais ou submetidos a um regime despótico. Mas foi resultado também de uma vontade política de enfraquecimento da força sindical, que, nos Estados Unidos e na Grã Bretanha em especial, traduziu-se por uma série de medidas e dispositivos legislativos que limitaram o poder de intervenção e mobilização dos sindicatos [32].

Talvez essa fragmentação da classe trabalhadora, através da dessindicalização e da supressão de direitos trabalhistas, seja a principal e mais contundente manifestação do neoliberalismo nas relações de trabalho.

 É a partir da limitação e do enfraquecimento da luta sindical que as demandas dos trabalhadores ficam prejudicadas, pois os trabalhadores se desorganizam e, com isso, a imposição de medidas pelos empregadores, com pouca ou nenhuma contestação, se torna exponencialmente mais fácil.

6         Considerações finais

Vislumbrando a evolução e a dominação paulatina da razão neoliberal no mundo e posteriormente no Brasil, é possível notar que os direitos dos trabalhadores são os primeiros alvos das ações neoliberais.

 Nesse sentido, basta analisar a alteração legislativa aplicada através da reforma trabalhista que suprimiu direitos, sufocou a atuação sindical de maneira irreversível, instituiu a concorrência entre os próprios trabalhadores, deu força para acordos e convenções coletivas.

Com o advento da reforma, as negociações se sobrepõem às leis, o que possibilita que os trabalhadores sejam facilmente colocados em situações complicadas, na medida em que se criou a ficção legal da igualdade de condições para negociação entre trabalhador e empregador.

Desde a reforma passou a ser possível pactuar diretamente com o empregador a jornada de trabalho, intervalo, férias, banco de horas, ou seja, o trabalhador pode dispor de praticamente todos seus direitos. Tudo graças a uma suposta liberdade de negociação entre empregado e empregador, fortalecendo o sobremaneira a concorrência instituída pelo neoliberalismo, inclusive entre trabalhadores que cada vez mais, têm de disputar oportunidades de trabalho sem proteção jurídica e pouco remunerados.

 Após a alteração trazida pela reforma, algumas outras leis foram promulgadas, como por exemplo a Lei da Liberdade Econômica, promulgada em 20 de setembro de 2019 e as diversas MPvs editadas em virtude da pandemia.

Na referida lei, resumidamente, é legitimada a livre negociação entre empregado e empregado do trabalho aos domingos e feriados e regulamentado o uso da Carteira de Trabalho eletrônica, além de trazer orientações sobre o controle de jornada dos funcionários, mitigando mais alguns direitos dos trabalhadores[33].

 A lista de alterações legislativas ocorridas com o advento da Lei 13.467/2017 é extensa e passível de um estudo próprio, tanto que os impactos das modificações ainda não podem ser mensurados, inclusive por ainda não estar consolidada a jurisprudência acerca da reforma para que se possa estudar melhor esses efeitos na aplicação cotidiana.

 Por ora, cabe enfatizar que, uma grande manifestação dos ideais neoliberais trazidas pela reforma e que atingem diretamente as relações de trabalho, modificando as estruturas dessas relações, são as novas modalidades de contração que foram trazidas pela reforma trabalhista.

Com o advento da alteração legislativa, é possível contratar um funcionário para trabalhar apenas alguns dias e chamar esse contrato de trabalho intermitente, terceirizar a atividade-fim da empresa e utilizar a jornada de trabalho 12×36, que antes não possuía amparo legal.

Sob o prisma econômico, a justificativa para adoção das novas modalidades de contratação foi a geração de empregos, mesmo que de forma não tradicional.

REFERÊNCIAS

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SILVA, Marcelo Lira. Os fundamentos do liberalismo clássico: A relação entre estado, direito e democracia. Aurora, Marília, v. 5, n. 1, pp. 121-147, 2011.

[1] Aqui se parte do pressuposto agambeniano de que “crise” é uma palavra de ordem, daí porque se afirma que são discursos sobre a crise. Vide: SALVÀ, Peppe. “Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro” | Entrevista com Giorgio Agamben. Trad. Selvino J. Assmann. Blog da Boitempo, São Paulo, 31 ago. 2012. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2012/08/31/deus-nao-morreu-ele-tornou-se-dinheiro-entrevista-com-giorgio-agamben. Acesso em: 21 set. 2021.

[2] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 68.

[3] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 17.

[4] LAZZARATO, Maurizio. O Governo das desigualdades: crítica da insegurança neoliberal. Trad. Renato Abramowicz Santos. São Carlos: EdUFSCar, 2011, p. 29

[5] LAZZARATO, Maurizio. O Governo das desigualdades, p. 39.

[6] SILVA, Marcelo Lira. Os fundamentos do liberalismo clássico: A relação entre estado, direito e democracia. Aurora, Marília, v. 5, n. 1, pp. 121-147, 2011, p. 124.

[7] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A Nova Razão do Mundo, p. 39-40.

[8] COUTINHO. Jacinto Nelson de Miranda. Neoliberalismo e Direito: Repercussão no Ensino Jurídico. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 32, pp. 55-60, 1999, p. 57.

[9] SANTOS, Enoque Ribeiro dos. Curso de Direito do Trabalho. O direito coletivo do trabalho sob a perspectiva histórica. Vol. 3: direito coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 2008, p. 18.

[10] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A Nova Razão do Mundo, p. 37-38.

[11] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A Nova Razão do Mundo, p. 57.

[12] A expressão New Deal quer dizer “novo acordo” [tradução livre].

[13] DRAY, Guilherme. O New Deal e a negociação coletiva: uma lição para a Europa. https://www.macedovitorino.com/xms/files/2016/Artigo_de_Opiniao_Guilherme_Dray_Outubro2016.pdf. Acesso em: 21 set. 2021.

[14] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A Nova Razão do Mundo, p. 57.

[15] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A Nova Razão do Mundo, p. 58.

[16] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A Nova Razão do Mundo, p. 59.

[17] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A Nova Razão do Mundo, p. 71.

[18] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A Nova Razão do Mundo, p. 72.

[19] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A Nova Razão do Mundo, p. 73.

[20] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A Nova Razão do Mundo, p. 96.

[21] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A Nova Razão do Mundo, p. 191.

[22] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A Nova Razão do Mundo, p. 194.

[23] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A Nova Razão do Mundo, p. 198.

[24] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A Nova Razão do Mundo, p. 201.

[25] MELHADO, Reginaldo. Transformações do Direito do Trabalho. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2002, p. 79-80.

[26] MELHADO, Reginaldo. Transformações do Direito do Trabalho, p. 80.

[27] LAZZARATO, Maurizio. O governo do homem endividado. Trad. Daniel P. P. da Costa. 1. ed. São Paulo: N-1 Edições, 2017, p. 217.

[28] MACHADO. Sidnei. A reforma trabalhista no Brasil a partir de uma perspectiva comparada das reformas na união europeia. Revista do TST, São Paulo, v. 83, n. 3, pp. 239-250, 2017, p. 239.

[29] MELHADO, Reginaldo. Transformações do Direito do Trabalho, p. 78.

[30] MAIOR. Jorge Luiz Souto. História do direito do trabalho no Brasil: Curso de direito do Trabalho. 1. ed. São Paulo: LTr, 2017, p. 358.

[31] MAIOR. Jorge Luiz Souto. História do direito do trabalho no Brasil, p. 358.

[32] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christhian. A Nova Razão do Mundo, p. 222.

[33] REDAÇÃO. Aprovado pelo Senado, MP da Liberdade Econômica agora é lei. Senado Federal, Brasília, 23 set. 2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/09/23/aprovada-pelo-senado-mp-da-liberdade-economica-agora-e-lei. Acesso em: 21 set. 2021.