Relações entre trabalhadores e plataformas e aplicativos

Artigo da sócia Elcemara A. Zielinski Cani, publicado na Revista do Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina.

 

Por Elcemara A. Zielinski Cani e Rodrigo Goldschmidt

RESUMO:  Com o avanço da tecnologia e o advento de novas formas de trabalho, especialmente aquelas desempenhadas a partir de aplicativos e plataformas, o mundo do trabalho enfrenta novos desafios e novas problemáticas. Uma das questões discutidas atualmente é a condição jurídica dos trabalhadores por intermédio de plataformas digitais.

Portanto, busca-se responder ao seguinte questionamento: Como o surgimento de aplicativos e plataformas digitais de trabalho modificam as relações tradicionais de subordinação entre tomadores e prestadores de serviços? Os objetivos do trabalho foram compreender a condição jurídica desses trabalhadores e o vínculo jurídico dos motoristas e entregadores com os algoritmos e as plataformas de trabalho. Em um primeiro momento, o presente artigo buscou trabalhar a diferença entre trabalho e emprego, levando em consideração o contexto nacional instaurado após a reforma trabalhista de 2017 (Lei n. 13.467/27). Posteriormente, o objetivo foi analisar as correntes doutrinarias que versam sobre o tema, bem como o posicionamento do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Por fim, analisou-se a subordinação produzida pelos algoritmos e seu reflexo na atual jurisprudência trabalhista, consoante os termos dos acórdãos dos processos 1000123-89.2017.5.02.0038 e  100353-02.2017.5.01.0066.

O resultado alcançado na pesquisa constatou que há uma condição ambivalente  na relação entre as plataformas digitais (aplicativos) e os trabalhadores. Elas (as plataformas) são utilizadas com pretensão de meras intermediárias entre o trabalhador e o usuário do serviço, levando ao entendimento de que os trabalhadores seriam apenas parceiros de negócios das plataformas. Porém, não há por parte da plataforma renúncia aos poderes de fiscalização e muito menos de punição.

Para realização da pesquisa, utilizou-se o método dedutivo com vistas à revisão bibliográfica e documental.

palavras-chave: subordinação; subordinação algorítimica; trabalho em plataformas digitais. Aplicativos digitais.

1. INTRODUÇÃO

 

O constante avanço da tecnologia no campo do trabalho, aliado aos fenômenos da  precarização das relações trabalhistas, da crise econômica decorrente da pandemia e do aumento do desemprego, têm contribuído significativamente para o aumento do número de trabalhadores que prestam serviços mediados por aplicativos (iFood, Uber, 99 etc.) e plataformas de trabalho (Amazon Mechanical Turk, Upwork, Appen, Lionbridge etc.). Há muitas questões controvertidas acerca do enquadramento jurídico desses trabalhadores, especialmente no tocante ao vínculo de emprego.

Portanto, levando em consideração a situação jurídica desses trabalhadores plataformizados[1], o presente artigo busca responder o seguinte questionamento: Como o surgimento de aplicativos e plataformas de trabalho modificam as relações tradicionais de subordinação entre tomadores e prestadores de serviços?

Parte-se das conclusões de pesquisa bibliográfica e documental na qual foi constatado que o principal argumento utilizado pela doutrina e pela jurisprudência para recusar vínculo de emprego entre trabalhadores e aplicativos/plataformas é a falta de subordinação jurídica (BRASIL, 2019) como pressuposto subjacente à relação.

As hipóteses formuladas são as de que tais entendimentos desconsideram a existência de uma subordinação algorítmica e que os algoritmos[2] por trás dos aplicativos e das plataformas digitais operam uma constante fiscalização do trabalho, aplicando punições e, independente de notificação prévia, descredenciam os trabalhadores (ambos atos inerentes à subordinação) da continuidade da prestação de serviços, ou seja, de que se estabelece um regime digital de subordinação entre trabalhadores e os algoritmos.

Nesse sentido, o presente trabalho tem por objetivo compreender a condição jurídica desses trabalhadores e a natureza do vínculo jurídico com o aplicativo/plataforma de trabalho. Em um primeiro momento, serão explicitadas as distinções entre trabalho e emprego, no contexto pós-reforma e de surgimento dos aplicativos. Posteriormente, serão analisadas as correntes doutrinárias, bem como o posicionamento do Tribunal Superior do Trabalho (TST) nos acórdãos do Recursos de Revista 1000123-89.2017.5.02.0038 e 100353-02.2017.5.01.0066 acerca da condição jurídica e do enquadramento desses trabalhadores. Por fim, será analisada a subordinação produzida pelos algoritmos, e seu reflexo na atual jurisprudência trabalhista, consoante os termos dos acórdãos dos processos supracitados.

O tema encontra relevância ante a incerteza jurídica que permeia a relação entre trabalhadores e aplicativos. A análise dos acórdãos supracitados do TST é necessária para vislumbrar o caminho jurídico que a Corte tem trilhado para pacificar o entendimento sobre a existência de subordinação na relação entre tomadores e prestadores de serviços, delimitando a condição jurídica desses trabalhadores e concatenar os argumentos utilizados para fundamentar os acórdãos em questão, mesmo levando em consideração que nenhuma das decisões em tela transitou em julgado.

Para realização do trabalho, será utilizado o método de abordagem dedutivo e o método de procedimento monográfico, com consulta a fontes bibliográficas e documentais (acórdãos e legislação).

2. Trabalho e Emprego no Contexto da Pós-Reforma Trabalhista

Para além da etimologia da palavra trabalho, que deriva da palavra “tripalium” originária do latim e que remete à um instrumento de tortura utilizado para punir escravos, pode-se definir trabalho sob diversos prismas. Para o ser humano tem um caráter pessoal, oriundo da sua livre vontade e traduz o valor e a personalidade de quem executa. Possui como característica a transcendência social, atuando como meio de subsistência, meio de acesso à propriedade e cumpre uma série de funções sociais (BARROS, 2017, p. 46).

Sabe-se que o trabalho pode ser realizado em benefício próprio ou de terceiros. O trabalho em benefício próprio não é objeto de regulação jurídica. Por outro lado, o trabalho feito em benefício de terceiros recebe múltiplos tratamentos jurídicos, pois pode ser trabalho voluntário, trabalho por empreitada/autônomo/prestação de serviços, trabalho na condição de empregado, trabalho na condição de profissional liberal, trabalho na condição de empresário e, mais recentemente, trabalho intermediado por plataformas e/ou aplicativos digitais.

Os enquadramentos jurídicos foram ampliados pelas recentes reformas trabalhistas, em decorrência das novas modalidades de contratação. A redação do art. 3º da Consolidação das Leis do Trabalho  – CLT permanece o mesmo desde 1943, mas a flexibilização dos requisitos da relação de emprego (pessoalidade, habitualidade, subordinação e remuneração), corolário de algumas das alterações (p. ex. a terceirização flexibilizou a subordinação e a pessoalidade), distendeu e alterou a delimitação de tais requisitos.

Essa tendência de flexibilidade das normas trabalhistas não é fruto da reforma trabalhista. Antes disso, a doutrina já alertavam para a necessidade de obstar ou pelo menos reduzir o avanço da flexibilização. E também buscava definir um conceito que englobasse todos os efeitos nas relações de trabalho. Foi exatamente o que fez Rodrigo Goldschmidt:

Nessa linha, para os fins desde estudo, entende-se por “ flexibilização” o movimento impulsionado pela ideologia neoliberal, que pretende suprimir ou relativizar as normas jurídicas que garantem a proteção do empregado na relação contratual com o seu empregador, com vistas a “baratear” a mão-de-obra e o “custo” da produção, viabilizando, pretensamente, a competitividade das empresas no mercado globalizado.( GOLDSCHMIDT, 2008, p. 145).

Ademais, embora a tendência de flexibilização não seja propriamente uma novidade, a reforma possibilitou a exigência cada vez mais recorrente pelos tomadores de serviços de inscrição de trabalhadores como micro-empresários individuais. Frequentemente, esse é um pretexto para a contratação de trabalhadores sem a caracterização de vínculo de emprego (flexibilização da pessoalidade).

Neste contexto de flexibilização, o trabalho em diversos tipos de plataformas se expandiu de forma rápida e uniforme no Brasil. A utilização dos trabalhos em plataformas ganhou força principalmente depois do advento da pandemia de Coronavirus, que agravou a crise econômica em curso e aumentou substancialmente a situação de desemprego e colocou em risco a subsistência de diversas famílias.

Esse modelo de trabalho, que não é reconhecido como emprego e não tem vínculo e proteção formal, recebe diversas críticas pela forma precária à qual o trabalhador é submetido, uma vez que exclui a possibilidade da realização do trabalho digno garantido pela Constituição Federal brasileira no seu artigo 7°.

O modelo de trabalho adotado pelas plataformas é criticado inclusive por utilizar o modo de organização de trabalho como estratégia para evitar a contratação de trabalhadores com vínculo de emprego protegido pela Constituição e pela CLT, conforme bem explicam Vitor Filgueiras e Ricardo Antunes:

As supostas novas formas de organização do trabalho associadas ao uso das novas tecnologias de informação e comunicação (TIC) e às empresas que se apresentam como plataformas ou aplicativos são, na verdade, estratégias de contratação e gestão do trabalho que mascaram o assalariamento presente nas relações que estabelecem. A negação do assalariamento é elemento central da estratégia empresarial, pois, sob a aparência de maior autonomia (eufemismo para bular o assalariamento e efetivar a transferência dos riscos), o capital busca, de fato, ampliar o controle sobre o trabalho e recrudescer a exploração e a sujeição. (FILGUEIRAS; ANTUNES, 2020, p. 60)

Nesse sentido, pode-se dizer que as plataformas e os aplicativos de trabalho se inserem na dimensão preparada e cunhada por meio da alteração da legislação trabalhista. Dificultado o reconhecimento do vínculo de emprego, as empresas podem deixar de pagar aos trabalhadores todos os valores de férias, terço constitucional de férias, 13º salário, FGTS, contribuições sociais e INSS patronal. Consequentemente, criam-se condições ótimas para a exploração do trabalho a baixo custo e altos lucros. As plataformas de trabalho e os aplicativos aproveitam a oportunidade produzida pela condição ambígua que ocupam: por um lado, vendem os produtos de “parceiros comerciais” que utilizam os sites/aplicativos como plataformas de vendas, por outro, convocam os serviços de “parceiros de trabalho” que fazem as entregas.

A situação jurídica dos trabalhadores plataformizados ainda é um tanto incerta, pois não há uma legislação específica para regulamentar essa forma de trabalho e a CLT aparentemente não contempla a categoria. A doutrina tem posicionamento divergente acerca do tema e o TST tem firmado entendimento negativo ao vínculo de emprego desses trabalhadores atráves de uma decisão de um Recurso de Revista ainda, o qual, por sua vez, foi reconhecido em julgamento mais recente, igualmente não transitado em julgado.

3. Entendimentos acerca da condição jurídica do trabalhador plataformizado

O enquadramento dos trabalhadores de plataformas e aplicativos digitais ainda é bastante controverso na doutrina. Para alguns juristas, a condição paradoxal dos trabalhadores que não são empregados, empregadores que não empregam e de empresas que prestam serviços sem ter a propriedade dos meios (p. ex. a Uber não tem veículos para prestar serviço de transporte e nem de entregas, assim como a Airbnb não é proprietária dos quartos cuja locação intermedia), afasta a incidência ou torna inaplicável o principal requisito legal do vínculo de emprego: a subordinação.

A negativa de semelhança com os serviços tradicionais, a insistência em uma roupagem inovadora das atividades e na existência de mera intermediação, é, sem dúvidas, uma clara tentativa de afastar a incidência da regulação prevista para os serviços convencionais (FRAZÃO, 2016), inclusive no tocante a subordinação jurídica e ao vínculo de emprego formal.

A  subordinação que vem sendo frequentemente flexibilizada para encaixar os trabalhadores em condições de meros prestadores de serviços, tem seu conceito, de certa maneira, uniforme na doutrina. Em geral tende a caracterizar-se basicamente pelo submetimento do trabalhador às ordens e ao poder diretivo do empregador. De todo modo, para compreender como ocorre a mitigação da subordinação, cabe salientar a definição dada por Mauricio Godinho Delgado:

Conceito e Caracterização: Subordinação deriva de sub (baixo) e ordinare (ordenar), traduzindo a noção etimológica de estado de dependência ou obediência  em relação a uma hierarquia de posição ou de valores. Nessa mesma linha etimológica, transparece na subordinação uma ideia básica de submetimento, sujeição ao poder de outros, às ordens de terceiros, uma posição de dependência. (DELGADO, 2012, p. 294-295)

O entendimento observado até o momento, também adotado pela 5ª Turma do  Tribunal Superior do Trabalho no julgamento do Recurso de revista 1000123-89.2017.5.02.0038, é o de que o trabalhador tem autonomia para decidir se, quando e onde acessar a (e desconectar da) plataforma ou aplicativo digital, razão pela qual não se subordina à plataforma ou ao aplicativo (BRASIL, 2020). Essa concepção contratualista, segundo a qual prevalece a autonomia da vontade do trabalhador, reputa que é possível escolher até mesmo o local e o horário da prestação do serviço.

Fazendo uma breve análise do acórdão em tela, que decidiu não reconhecer o vínculo de emprego formal do trabalhador com a plataforma Uber, verifica-se que o entendimento majoritário da 5ª Turma do TST também não considera a relação de trabalho como parte da denominada economia de compartilhamento, conforme depreende-se deste trecho da decisão:

As demandadas, em apertada  síntese, se opuseram a pretensão autoral argumentando não se tratarem de empresas de transportes, mas cuja atividade principal é a exploração de plataforma tecnológicas, e que nessa perspectiva os motoristas atuam como parceiros, consubstaciando o que hoje se denomina economia compartilhada. Aduziram a ausência de habitualidade, onerosidade, pessoalidade e subordinação.

[…] No que respeita ao objetivo empresarial das demandas, é falacioso o argumento utilizado na medida em que há controle da concretização do serviço de transporte prestado pelo motorista, dito parceiro. Se se tratasse de mera ferramenta eletrônica, por certo as demandas não sugeririam o preço do serviço de transporte a ser prestado e sobre o valor sugerido estabeleceriam o percentual a si destinado. Também não condicionariam a permanência do motorista às avaliações feitas pelos usuários do serviço de transporte. Simplesmente colocariam a plataforma tecnológica à disposição dos interessados, sem qualquer interferência no resultado do transporte fornecido, e pelo serviço tecnológico oferecido estabeleceriam um preço/valor fixo a ser pago pelo motorista pelo tempo de utilização, por exemplo. (BRASIL, 2020.)

Além do entendimento do TST neste julgamento paradigma, assevera-se que a maioria dos tribunais se coadunam com o entendimento da Corte Superior.  Segundo pesquisa feita por Natália Marques Abramides Brasil nas decisões do Tribunal do Trabalho de 3° Região (São Paulo), verifica-se que frequentemente as decisões excluem a subordinação da relação, decidindo pela improcedência do pedido de reconhecimento de vínculo (BRASIL, 2019. p. 98).

 Ainda, segundo a pesquisa realizada pela autora supracitada, alguns julgados analisam e excluem outros elementos característicos do vínculo de emprego, não reconhecendo o trabalhador plataformizado como empregado:

[…] Verificou-se a prevalência da utilização de critérios referentes à inexistência dos seguintes aspectos relacionados à caraterização da relação de emprego: a) poder diretivo (em especial considerando as diretrizes passadas pela reclamada aos motoristas se tratariam não de ordem, mas de mera sugestão de conduta, sem acarretar em qualquer consequência em caso de não observância); b) possibilidade de controle de jornada realizada pelo trabalhador, tendo em vista a utilização do aplicativo pelos motoristas conforme sua conveniência, seja em relação aos dias laborados, seja em relação à jornada realizada; c) assunção dos riscos do empreendimento e organização empresarial própria, com base no fato de serem os motoristas os responsáveis por arcar com todas as despesas do veículo, tais como combustível, consertos e seguro. (BRASIL, 2019, p. 98).

Esse entendimento, por um lado, ignora a assimetria entre prestadores e tomadores do trabalho, a qual está na base da criação do direito do trabalho, cuja principal missão é a proteção do empregado de “forma a minimizar uma desigualdade real diante do poder econômico do empregador, por um sistema de regras jurídicas” (COUTINHO, 1999, p. 7), e, por outro, contribui para a que a clássica concepção de poder punitivo trabalhista seja adaptada para as plataformas e os aplicativos digitais.

Neste sentido, pode-se afirmar que as plataformas e aplicativos digitais tendem a mascarar seu poder diretivo valendo-se de um controle por algoritmos:

[…] as plataformas de trabalho híbridas ao constituir, organizar e manter um padrão de trabalho assalariado assumem a típica faceta do empregador no exercício do poder diretivo e assim atraem a incidência do Direito do Trabalho. A inovação deste modelo empresarial ocorre nos expedientes mais sutis para a manifestação do controle. Abdica-se da estratégia fordista da hierarquia e vigilância do tempo para se valer de um controle por algoritmos, um sistema de reputação, poder punitivo e um dirigismo econômico. Novos métodos tecnológicos e de gestão empresarial para o típico trabalho assalariado, inclusive a gerar uma nova questão social pela retomada da mais-valia absoluta: grandes jornadas; baixa remuneração; custos e riscos de produção atribuídos ao trabalhador. (OLIVEIRA; CARELLI; GRILLO, 2020)

Trata-se, em suma, do favorecimento de uma linha de entendimento segundo a qual o direito de propriedade passa a justificar “uma dominação sobre as pessoas” (COUTINHO, 1999, p. 236) e os aspectos contratuais da relação de trabalho recebem o tratamento de ilícitos para que gerem punições ao invés de serem tratados como inadimplementos contratuais. Ou seja, é uma concepção que ignora o simples fato de que “inexiste castigo para o empregado faltoso.” (COUTINHO, 1999, p. 236).

Portanto, verifica-se que há uma série de argumentos utilizados pelo TST e outros tribunais para excluir a subordinação jurídica das relações intermediadas por aplicativos e plataformas digitais, deixando de lado indícios de aplicação do poder diretivo por parte das plataformas e até mesmo a existência de uma economia de compartilhamento. Entretanto, esse entendimento não é unânime, conforme será detalhado no próximo tópico.

4. Subordinação algorítmica e novas formas de subordinação

No entanto, alguns doutrinadores partem do entendimento de que o trabalhador está submetido ao trabalho subordinado, mesmo que a subordinação não seja exercida pela figura do empregador, como ocorre tradicionalmente. Trata-se de uma espécie de subordinaçao algorítimica,  como bem explica o professor Antônio Carlos de Vasconcelos:

No trabalho intermediado por plataformas virtuais não é mais o relógio que comanda o trabalho do trabalhador, mas o computador através de gestão programada e centralizada por meio de um algoritmo que define regras e comandos expressos por sinais, aos quais o trabalhador  para realizar os objetivos do programa. Trata-se de um passo-a-passo para transformar os dados inseridos em um resultado desejado e que até dispensam o antigo modelo de gestão pessoal do trabalho. A tarefa é entregue ao algoritmo que pode até decidir pela desativação (“dispensa”) do trabalhador mediante rigoroso sistema de avaliação estatística. Aqui o próprio homem é que é o objeto da programação, não o software. Os lucros da plataforma, que tem caráter empresarial, não advém do fato sua disponibilização onerosa aos usuários mas incidem sobre valores pagos pelos serviços prestados pelo trabalhador. (VASCONCELOS, 2019, p. 49)

A subordinação algoritmica pressupõe uma reformulação do conceito clássico de subordinação e considera válido os meios eletrônicos e telemáticos de supervisão e controle, bem como, leva em consideração as mudanças nas formas do cumprimento do trabalho e do recebimento e cumprimento de ordens. (FINCATO, WÜNSCH. 2020).

Há também uma corrente doutrinária que tende a classificar os trabalhadores plataformizados como parassubordinados, seguindo a corrente doutrinária italiana. Essa concepção, apesar de pouco utilizada no Brasil, pode ser conceituada da seguinte maneira:

Os aspectos que qualificam o trabalho parassubordinado, segundo a doutrina e a jurisprudência italianas, podem ser sintetizados na presença pessoal dominante da qual deriva a conotação de infungibilidade; na coordenação e na interação funcional com estrutura da empresa ou com o interesse do sujeito que se utiliza do trabalho de outrem, bem como na continuidade do empenho no tempo até atingir o resultado (filme, representação, espetáculo ou programa de televisão). (Grifos da autora) (BARROS, 2017, p. 179)

A concepção de trabalhador parassubordinado não se encaixa de forma fidedigna no formato de prestação de serviço exercido pelos motoristas de aplicativo e pelos trabalhadores de plataformas, não só pelo fato do conceito ser pouco utilizado no Brasil, como também por ser uma categorização utilizada para enquadrar trabalhadores da indústria do entretenimento e assemelhados.

Entretanto, a insuficiência do conceito de parassubordinação não é suficiente para afastar o reconhecimento da existência de uma atualíssima subordinação algorítmica. Nesse sentido, o recente julgado do TST que reconheceu o vínculo de emprego de trabalhador com o Uber, adota expressamente tal modalidade de subordinação como caracterizadora do elemento supostamente faltante para a jurisprudência majoritária:

Por fim, a subordinação jurídica foi efetivamente demonstrada, destacando-se as seguintes premissas que se extraem do acórdão regional, incompatíveis com a suposta autonomia do trabalhador na execução do trabalho: 1) a Reclamada organizava unilateralmente as chamadas dos seus clientes/passageiros e indicava o motorista para prestar o serviço; 2) a empresa exigia a permanência do Reclamante conectado à plataforma digital para prestar os serviços, sob risco de descredenciamento da plataforma digital (perda do trabalho); 3) a empresa avaliava continuamente a performance dos motoristas, por meio de um controle telemático e pulverizado da qualidade dos serviços, a partir da tecnologia da plataforma digital e das notas atribuídas pelos clientes/passageiros ao trabalhador. Tal sistemática servia, inclusive, de parâmetro para o descredenciamento do motorista em face da plataforma digital – perda do trabalho -, caso o obreiro não alcançasse uma média mínima; 4) a prestação de serviços se desenvolvia diariamente, durante o período da relação de trabalho – ou, pelo menos, com significativa intensidade durante os dias das semanas -, com minucioso e telemático controle da Reclamada sobre o trabalho e relativamente à estrita observância de suas diretrizes organizacionais pelo trabalhador, tudo efetivado, aliás, com muita eficiência, por intermédio da plataforma digital (meio telemático) e mediante a ativa e intensa, embora difusa, participação dos seus clientes/passageiros.(grifos do autor). (BRASIL, 2022).

Ademais, as punições adotadas pelos aplicativos e pelas plataformas digitais extrapolam até mesmo o equilíbrio contratual que assumem como pressuposto. Em alguns casos, os trabalhadores são penalizados, recebem advertências, são bloqueados e até mesmo desligados como ocorre, por exemplo, com os cancelamentos de corridas por parte dos motoristas de Uber. Existem punições também para motoristas que tem nota de avaliação (feita pelos usuários) abaixo de 4,6 em uma escala que vai de 0 até 5. (CARELLI, 2021, p. 177). [3]

Logo, trata-se de uma tentativa de fazer prevalecer uma responsabilidade civil do motorista sem qualquer tipo de dano, a qual extrapola os limites legais previstos no art. 186 e  do Código Civil. Note-se que referido artigo estabelece um dever jurídico de reparar danos causados, tendo como pressupostos o descumprimento de um dever jurídico precedente e a caracterização de um dano:

“Só se cogita, destarte, de responsabilidade civil onde houver violação de um dever jurídico e dano. Em outras palavras, responsável é a pessoa que deve ressarcir o prejuízo decorrente da violação de um precedente dever jurídico. E assim é porque a responsabilidade pressupõe um dever jurídico preexistente, uma obrigação descumprida.” (CAVALIERI FILHO, 2012, p. 2)

Em sintonia com essa disposição, o art. 927 do Código Civil reconhece que a obrigação de reparar os danos vincula quem pratica ato ilícito, assim entendidas as ações e as omissões realizadas nos termos dos arts. 186 e 187 do mesmo Codex. Portanto, além de inerente a um pretenso direito punitivo, a prática é ilegal e abusiva, caracterizando nítida situação de desequilíbrio contratual. Tudo isso reforça a procedência de teses que reconhecem uma subordinação algorítmica.

5. Conclusões

Em um primeiro momento, a pesquisa constatou que a condição ambivalente das plataformas e dos aplicativos é utilizada com pretensão de meras intermediárias entre o trabalhador e o usuário do serviço, levando ao entendimento de que os trabalhadores seriam apenas parceiros de negócios das plataformas. Porém, não há por parte da plataforma renúncia aos poderes de fiscalização e muito menos de punição. Tanto os anunciantes de produtos quanto os prestadores de serviços podem ser penalizados (descontos retidos nos valores a receber) ou descredenciados se descumprirem as regras das plataformas/aplicativos.

O entendimento majoritário, segundo o qual não há vínculo de emprego entre trabalhadores e plataformas ou aplicativos, deixa em aberto as imprescindíveis questões acerca da condição paradoxal dos aplicativos e das plataformas, das punições aplicadas aos trabalhadores independente de qualquer dano, bem como das relações assimétricas com os trabalhadores.

Tal lacuna se dá sobretudo por estar calcado na concepção tradicional de subordinação, pretérita às novas tecnologias e, por isso, completamente alheia às transformações produzidas pelas recentes técnicas computacionais.

Esse entendimento encara o tema de maneira isolada do modo de sua prestação, o que permite abstrair da relação de trabalho as formas de fiscalização, controle e punição. De acordo com tal concepção, tem-se uma ressignificação das relações trabalhistas e do vínculo de emprego que toma como pressuposto o fato de que “a separação do sujeito trabalhador e sua força de trabalho somente ocorre artificiosamente, para permitir a adoção de uma contratualidade como instrumento jurídico de inserção do trabalho como elemento de produção.” (COUTINHO, 2016, p. 55).

Ou, dito de outro modo, uma linha de entendimento que atende aos anseios da versão neoliberal do capitalismo, para a qual é imprescindível uma cisão discursiva entre sujeito e objeto do trabalho de acordo com a qual a produção de riquezas é quase independente do trabalho desempenhado e o sujeito deve se submeter aos desmandos dos novos tomadores do trabalho – anteriormente enquadrados juridicamente como empregadores.

Uma compreensão mais ampla do fenômeno, contudo, deve abranger não só a existência de um empregador que exerce pessoal e presencialmente a fiscalização e o controle da realização do trabalho, mas também as possibilidades de automa(tiza)ção dessas tarefas. Nesse sentido, o uso de algoritmos, por um lado, é incompatível com a noção consolidada de subordinação, e, por outro, não só mantém presente a subordinação, como também tornam mais sutis e presentes a fiscalização e o controle.

De certo modo, essa compreensão está ocorrendo gradativamente, é o que se verifica a partir da análise dos dois acórdãos divergentes do TST. Enquanto uma câmara entende que não há vínculo de emprego e o trabalhador plataformizado não é subordinado, a outra entende que há o exercício do controle e a incidência do poder diretivo por parte dos aplicativos e plataformas digitais. Dito de outro modo,  esta-se caminhando para o aprofundamento do tema e a uniformização da jurisprudência, mesmo que isso não signifique encerrar a discussão ou resolver o problema definitivamente.

Outros questionamentos ainda não respondidos sobre o tema são: Quais os limites da subordinação algorítimica ou até que ponto o controle telemático pode chegar para direcionar e coordenar os trabalhos prestados de forma remota? Ou ainda, como será feito o reconhecimento dessa nova perspectiva de subordinação? Enfim, quais serão os direcionamentos que as novas tecnologias e o direito do trabalho precisarão tomar para abranger os novos formatos das relações de trabalho?

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ROSENFIELD, Cinara Lerrer; ALMEIDA, Jalcione. Editorial: Plataformização do trabalho. Sociologias, Porto Alegre, a. 23, n. 57, pp. 9-16, 2021.

VASCONCELOS, Antônio Gomes de Vasconcelos. Impactos da tecnologia da informação nas relações de trabalho: das plataformas vituais (crowdsourcing) ao precariado e ao desemprego. In: POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot. BARBATO, Maria Rosaria. MOURA, Natália das Chagas (Orgs). Trabalho, Tecnologias e os Desafios Globais dos Direitos Humanos: Estudos e Perspectivas Criticas.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

[1] Aqui entendidos como trabalhadores incluídos no processo chamado de plataformização: “O fenômeno da plataformização comporta uma multiplicidade de abordagens. É possível discuti-lo sob a ótica da datificação ou da vigilância, da financeirização, do papel dos algoritmos, entre outros. O que define transversalmente o fenômeno nas diversas abordagens é a gestão algorítmica do trabalho, vigilância invisível e constante sobre o trabalhador, extração de dados e sua incorporação ao capital, disponibilização constante do trabalhador sem qualquer obrigação de nenhuma das partes, trabalho como mero fator de produção sem qualquer responsabilidade sobre a sua reprodução (Abílio, 2020). A plataformização possibilita transformar o trabalhador em just-in-time, ou seja, um trabalhador (qualquer um) sempre disponível para o trabalho e que pode ser utilizado na exata medida das demandas do capital.” (ROSENFIELD; ALMEIDA, 2021, p. 9-10)

[2] Algoritmo é um “conjunto de cálculos matemáticos, usado para encriptar dados, compactar arquivos, entre várias outras aplicações.” (MORIMOTO, s.d., p. 68)

[3] No artigo escrito por Rodrigo de Lacerda Carelli há uma série de relatos de motoristas vinculados à plataforma Uber, aduzindo que há punições e que ocorre o descredenciamento da plataforma dos motoristas por cancelamento de corridas: “O motorista Rafael informou que: “Se você tem um nível muito grande de rejeição de corridas, eles te mandam um e-mail ou te bloqueiam e te chamam pra ir lá [na sede da Uber].” “Diego, 32 anos, superior completo em educação física, afirmou que: “os motoristas vêm recebendo comunicados dizendo para o motorista não recusar Uber pool, sob pena de ser descredenciado.””