O papel da defesa no processo penal: de To Kill a Mockingbird a Lincoln Lawyer

Capítulo escrito pelo sócio Luiz Eduardo Cani para o livro Direito & Arte: ensaios para a defesa da democracia no Brasil, publicado pela Aya Editora.

 

Introdução

 

O convite formulado pelo querido amigo Professor Doutor Paulo Thiago Fernandes Dias foi irrecusável. Qualquer abordagem do gênero Direito & Literatura permite axs autorxs arriscar mais do que comumente está em jogo na escrita: é possível dialogar mais abertamente com a ficção. Com isso, quem sabe se possa balbuciar algo sobre o mal-estar que não pode ser codificado na linguagem e, por isso, é indizível. Num livro cujo título coloca o sentir em posição proeminente, importa tentar dizer um pouco do que se sente: um desconforto tremendo com o que vem sendo dito, escrito e encenado sobre a defesa penal.

As representações artísticas da defesa sofreram alterações substanciais nas últimas décadas, no tocante tanto ao conceito de defesa, quanto ao que se espera dxs defensorxs. Tendo em vista a proposta do livro, é preciso considerar o cinema, no qual essa transformação pode ser constatada numa ampla gama de produções: To kill a mockingbird, 12 angry men, A few good men, The firm, The life of David Gale, The devil’s advocate, Reversal of fortune, Suits, Better call Saul, Lincoln lawyer, How to get away with murder etc.

Pode-se recorrer a pelo menos dois importantes critérios de classificação dessas representações: um com relação a atividade probatória e outro com relação à pratica de crimes. O primeiro critério permite separar a defesa, na falta de expressão melhor, em passiva ou ativa. O segundo critério separa as representações da defesa entre as sempiternas versões criminalizadas – ao estilo de The devil’s advocate e Better call Saul – e as defesas heroicas – ao estilo de To kill a mockingbird e A few good men. O primeiro critério pode ser inserido um eixo x, enquanto o segundo num eixo y, uma vez que não são mutuamente excludentes.

A criminalização da advocacia é uma das formas de ataque à democracia – subtema deste livro. Após a democracia grega antiga ser criada para suprir a lacuna deixada pela derrocada do império micênico, provocada pela invasão dórica, no século XII a.e.c., surgiram as condições de possibilidade para o debate público. O caminho foi lento e tortuoso. Foram necessários quase quatro séculos para a recuperação da escrita, no contato com os fenícios. A seguir, a instituição da cidade e a formação de um pensamento racional grego estiveram na base da constituição de uma nova forma de vida. As reformas sociais de Clístenes e o aparecimento da Ágora possibilitaram a discussão em comum dos rumos da polis. A filosofia política nasceu como forma dessa discussão por volta do século VI a.e.c.[1]. Nesse contexto, um primeiro nascimento da advocacia se deu no debate de ideias, na defesa de posições e opiniões – não por acaso se pode conceber, de maneira não pejorativa, os sofistas como advogados e vice-versa. Criminalizar essa atividade é, por isso, criminalizar a democracia, pois, a advocacia só pode existir numa democracia – com todas as consequências dessas afirmações, ainda que consideradas as ressignificações da democracia durante os mais de dois milênios de sua concepção[2].

Mas a criminalização da advocacia já foi objeto de inúmeras análises, razão pela qual não interessa neste texto. A recorrência das análises não é de surpreender, tendo em vista a íntima relação entre direito e violência[3] que causa o apodrecimento de algo no direito[4].

Aliás, as feridas do direito continuam apodrecendo. Mas é melhor que se cubra o nariz para não sentir o odor que prenuncia a chegada dos urubus, pois, por um lado, esse é outro tema inerente à democracia – que também não cabe desenvolver aqui –, e, por outro, o que interessa neste texto não são as coisas do direito atualmente putrefatas, senão uma daquelas coisas que ainda podem vir a apodrecer.

O que cabe à defesa no processo penal? A pergunta parece de menor importância. Num olhar apressado parece não ter nenhuma complicação. Mas, se, num movimento repentino, olhar-se novamente – como fez o médico rural de Kafka[5] – perceber-se-á que diversas propostas atuais para a defesa penal são autoritárias muito antes de democráticas. Isso porque se prestam muito mais à acusação do que à defesa.

Mutatis mutandis, valem as palavras de Ricardo Timm de Souza acerca da ferida do paciente do médico rural: a defesa penal que acusa “está ali. É real, mas não se dá completamente. Há que se aproximar dela, sempre mais, para poder percebê-la.” (Souza, 2020, p. 228).

Num primeiro momento, se abordará o papel dos sujeitos processuais penais, contextualizando esse debate a um sistema acusatório – único no qual pode ser feito –, em seguida se fará uma dupla análise, tomando as representações da defesa em dois filmes. Começando com To kill a mockingbird e terminando com Lincoln Lawyer, porquanto são duas representações bastante distintas. A primeira, mais próxima do que se pode chamar de tradicional/clássica. A segunda, contemporânea.

1.                  Papeis dos sujeitos processuais penais

 

As discussões acerca dos papeis dos sujeitos processuais penais são amplamente conhecidas na comunidade jurídica. Remontam, pelo menos, a meados do século passado, e se concentram preponderantemente nos papeis de acusador e julgador, o que se deve, principalmente, às consequências das delimitações das atribuições, isto é, ao sistema processual penal adotado[6].

Se essa discussão só pode ser feita com seriedade no que concerne a um processo penal acusatório, inclusive no tocante ao papel da defesa, isso se deve a um conjunto de fatores.

Especificamente quanto à defesa, dois aspectos são fundamentais. Primeiro, num processo inquisitório de partes[7], o acusador não é mais do que um auxiliar do julgador. Segundo, num processo inquisitório, como o processo penal brasileiro, o papel da defesa pode variar, mas é sempre irrelevante[8] – nada obstante a centralidade do imputado[9].

Então, para analisar o papel dos sujeitos, toma-se como pressuposto o sistema acusatório a partir da demarcação do papel do juiz proposta por Jacinto Coutinho (2001; 2009) e da demarcação do papel do Ministério Público que se propôs noutra oportunidade (Cani, 2019).

Alguns textos são fundamentais para compreender as bases da discussão.

O discurso de Werner Goldschmidt em homenagem a seu pai, James Goldschmidt, La imparcialidad como principio básico del proceso (la partialidad y la parcialidad) contém uma imprescindível explicação da relação causal da imparcialidade, que permite constatar sua existência exclusiva em um processo acusatório: “A imparcialidade supõe a existência de partes; a [existência] de partes implica a [existência] de uma controvérsia. O princípio da imparcialidade só pode, portanto, existir onde há controvérsias”.[10]

Apesar de não se ter localizado a data exata em que o discurso foi proferido na Espanha, sabe-se que a sua publicação se deu em 1950.

Posteriormente, em 1953, Francesco Carnelutti publicou Mettere il pubblico ministero al suo posto (1994), ensaio com o qual provocou relevantes debates acerca do papel dos sujeitos processuais penais. O ponto central do texto é o que o autor chamou de quadratura do círculo: a pretensa posição de parte imparcial do Ministério Público. Essa aporia foi fruto de uma tentativa de fundir processo civil, no qual o MP tem posição superior de fiscal da lei, e do processo penal, no qual é parte – não por acaso, a atuação em segundo grau e nos tribunais superiores ainda é non sense.

Somadas as contribuições dos dois textos, chega-se à conclusão de que, num processo acusatório, a existência de acusador é condição de possibilidade da imparcialidade, razão pela qual é tão relevante para a demarcação dos papeis dos sujeitos processuais penais – embora insuficiente para qualificar um processo como acusatório[11]. Não por acaso, Aury Lopes Jr. afirma ser a parcialidade da parte proporcional à imparcialidade do julgador[12].

Desde as publicações dos ensaios de Goldschmidt e Carnelutti, muito foi discutido acerca do papel do juiz e do Ministério Público[13], mas o papel da defesa ainda recebe pouca atenção.

Hodiernamente, pode parecer uma questão meramente conceitual, pois, se à acusação cabe o papel de acusar, à defesa só pode cabe o papel de defender. Mas não é tão simples. O papel não é o ser (pergunta ontológica), mas o como fazer. Métodos, certamente. Mas também técnicas, táticas e estratégias. Política e direito, em suma. A partir dos princípios constitucionais, alguns acresceriam a ética. Desde que seja concebida como racionalidade ética[14] – ao invés de como tábua de valores[15] – pode-se concordar com a proposição.

A partir da distinção entre papel ativo e papel passivo da defesa, pode-se identificar algumas características importantes.

 

2.                  To kill a mockingbird

 

Lançado em 1962, o filme é inspirado no livro homônimo de Harper Lee, publicado dois anos antes. Sem dúvida, tanto o livro quanto o filme estão entre as melhores produções artísticas sobre o direito. A relevância da estória é tamanha que o heroico protagonista é a razão pela qual muitos juristas decidiram cursar direito[16].

A estória é ambientada na cidade de Maycomb, no Alabama, da década de 1930. Muitas cenas se passam na mesma rua. As personagens são, em grande parte, vizinhas. O cenário um tanto vazio e pacato provoca o mal-estar esperado do período que seguiu à crise econômica de 1929.

Atticus Finch, o protagonista, é um advogado generalista muito respeitado na comunidade. Características frequentemente comuns à advocacia brasileira do interior até, pelo menos, os anos 1990. Atticus também é viúvo e pai da menina Scout e do menino Jem, de quem Calpurnia, empregada doméstica, acaba desempenhando o papel de mãe em muitas cenas. A família, como o advogado reconhece, é pobre, mas não tão pobre quanto alguns clientes que levam gêneros alimentícios até sua casa para efetuar o pagamento dos honorários.

Enquanto Scout e Jem se aventuram pela vizinhança, um caso de estupro deixa a cidade em polvorosa, escancarando o racismo. Tom Robinson, homem negro, é acusado de estuprar Mayella Ewell. O juiz do caso vai até a casa de Atticus para nomeá-lo defensor. A expectativa da branquitude, obviamente, era de que a defesa proporcionada por Atticus fosse um muito conveniente e bastante conivente auxílio à acusação.

Para além da narrativa do herói branco que salva o pobre negro – imanente e incontornável em qualquer estória, ou história, em que as cores do imputado e dos demais são distintas, num esquema binário nós-eles – importante aqui o papel. Atticus não se deixa levar pelos interesses externos e internos. Ouve Tom e o defende com tudo o que dispõe.

Confronta a vítima e as testemunhas com perguntas pertinentes e diretamente relacionadas ao caso. Num exercício exemplar do contraditório, deixa claro que o caso é inteiramente baseado em elementos circunstanciais. Na inquirição da Mayella e de Bob Ewell, seu pai (testemunha de acusação), Atticus não somente produz dúvida razoável sobre o caso da acusação – o que é suficiente em um caso penal –, mas, também consegue o que pensa ser indispensável para uma absolvição naquele caso penal em específico, em que o corpo de jurados era inteiramente branco e pertencia a uma comunidade esmagadoramente branca.

Atticus consegue não só o reconhecimento de que Tom não estuprou a senhorita Mayella – o que já seria muito mais do que se pode exigir da defesa –, mas também que ela estava em um relacionamento amoroso com Tom. Nada obstante o reconhecimento da falsidade da comunicação do crime pela vítima, aos prantos, incomoda aos jurados muito menos essa falsidade do que o relacionamento amoroso interracial – o que não é uma “disfunção” do sistema penal. Tom é condenado, apesar de inocente, ou, quiçá, muito mais por sê-lo. Basta ver a quantidade de estupros não punidos para perceber que a comunidade se preocupa menos com as violações à sexualidade das mulheres do que as identidades de autores e vítimas – a ponto de ser necessário denunciar uma cultura do estupro.

Atticus é a representação da defesa tradicional/clássica, designada neste texto como passiva em relação à prova. Passiva não por inatividade, mas pela desnecessidade de produzir elementos para provar a inocência de Tom. Atticus fez o que pôde com os meios de prova apresentados pela acusação. Não apresentou nenhum outro meio.

Apesar de sedutora e muito atrativa, a prova da inocência não deve ser o foco da atenção na estória, pois a máxima innocent until proven guilty vigia no período em que se passa a história. Essa máxima, advogada pelo barrister inglês William Garrow perante o Old Bailey ainda em 1791[17], começou a ser admitida pela Suprema Corte estadunidense em Coffin et al. v. United States (1895)[18].

Atticus não provou a inocência de Tom porque tinha um dever de fazê-lo. Não importa quão preocupado e comprometido estivesse. A prova da inocência foi meramente acidental. Embora o cross-examination seja a melhor via conhecida para a produção de provas, não é ilimitado. O conhecimento e a boa-fé dos examinados são seus dois limites intransponíveis (cf. Edmond et al., 2018). Daí que o reconhecimento da inocência de Tom por Mayella, no exame cruzado, só foi possível porque ela sabia que Tom era inocente e foi sincera o suficiente para admitir isso.

A situação seria completamente diferente se Mayella mantivesse a versão falsa. Nesse caso, se provar a inocência fosse um dever de Atticus, teria falhado miseravelmente. As exigências de melhoria da atividade probatória da acusação se prestam a reforçar a presunção de inocência exatamente para evitar situações em que a versão falsa prevaleça diante da impossibilidade de que a defesa apresente novos meios de prova.

O desfecho da atuação de Atticus, como sói acontecer, foi a repulsa à defesa. Bob Ewell tentou matar Scout e Jem Finch. O homicídio não se consumou graças à inusitada intervenção de Boo Radley, um vizinho temido pelos irmãos.

 

3.                  Lincoln lawyer

 

Lincoln lawyer, assim como To kill a mockingbird, é uma adaptação do papel para as telas. A série de livros The lincoln lawyer, escrita por Michael Connely, conta com seis volumes, publicados entre 2005 e 2020. A adaptação para a televisão foi lançada em 2022 e conta com duas temporadas lançadas e a renovação para a terceira.

A série se passa nos dias de hoje, em Los Angeles. A personagem protagonista da série é Michael “Mickey” Haller, um advogado criminalista que tenta se reerguer após um acidente do qual resultou sua dependência de analgésicos.

A série televisiva não mostra muito do que foi a vida de Mickey antes, mas se sabe que era considerado o melhor criminalista de Los Angeles. O pós-acidente, contudo, é repleto de eventos inesperados. Nos tribunais, a personagem performa uma mistura de mágico com advogado. É, sem dúvida, o santo milagreiro procurado por muitos imputados.

Interessam neste texto apenas três momentos da primeira temporada.

O retorno de Mickey para a advocacia criminal se dá após o assassinato de Jerry Vincent, um dos maiores criminalistas de Los Angeles em atividade. O protagonista recebe uma ligação da juíza Mary Holder, corregedora do tribunal, convocando-o para seu gabinete. Ao chegar lá, é informado da morte de Jerry e da existência de uma espécie de testamento no qual foi apontado como sucessor de todos os casos e do escritório. O retorno, contudo, fica condicionado a Mickey ser supervisionado pela juíza que desconfia. O pretexto da supervisão é a dependência química.

Antes de sofrer o acidente, Mickey havia perdido o caso mais importante de sua carreira: a defesa de Jésus Menendez. A testemunha-chave de defesa desapareceu antes do julgamento, impossibilitando a apresentação de um álibi para a inocência de Menendez. Ao longo de toda a temporada Mickey se culpa pela falha e atua para reverter a situação. Toda sua equipe contribui para isso: Lorna Crane, sua assistente e segunda ex-esposa; Cisco, seu investigador particular e atual namorado de Lorna; Izzy, sua motorista.

A temporada termina com Mickey desvendando dois crimes. O caso mais relevante do escritório de Jerry era o de Trevor Elliott, um bilionário do setor de tecnologia acusado de matar a própria esposa. Mickey vence esse caso que se torna o maior de sua carreira. Em seguida, descontente com a reação de Trevor, Mickey insiste em avaliar os elementos do caso e descobre que Trevor era, de fato culpado. A cena final da temporada é a entrada triunfal de Mickey no gabinete da juíza Mary para anunciar que ela matou Jerry e tentou matá-lo também. A supervisão dos casos foi uma maneira de fiscalizar o quão próximo Mickey poderia estar de descobrir isso. A polícia entra em seguida e prende a juíza.

Mickey representa um estereótipo atual da defesa criminal, por um lado, inteligente, sagaz, estrategista e proativo, e, por outro, envolvido diretamente com o crime em relações bastante “fronteiriças” da legalidade.

É precisamente a inteligência, a sagacidade, a estratégia e a proatividade que aqui interessam.

Cotidianamente, entendimentos absurdos e abusivos restringem e, em alguns casos, fulminam a presunção de inocência. É legítima a revolta das defesas públicas e privadas com essas atrocidades. Afinal, a sensação de impotência é recorrente.

Daí que muitas pessoas – em geral muito bem intencionadas – passaram a buscar meios mais efetivos para a defesa, desde um referencial teórico até as ferramentas tecnológicas. A lista de propostas é imensa e todas dizem respeito ao que vem sendo frequentemente chamado de defesa penal efetiva:

 

A defesa criminal efetiva requer que o suspeito ou acusado seja capaz de participar nos processos dos quais ele é o objeto; entender o que é dito a ele e ser entendido; receber informação sobre o suposto delito ou acusação; ser informado do fundamento das decisões tomadas; ter acesso ao processo ou às provas; ter tempo e recurso que permitam ao acusado responder às acusações e se preparar para o julgamento; ser capaz de apresentar informação e prova a seu favor; ser tratado de forma a não ser colocado em uma posição de desvantagem; e recorrer das decisões relevantes tomadas contra o seu interesse. (BINDER; LLOYD-CAPE; NAMORADZE, 2016, p. 9).

 

Seria impossível tratar de todas, mas duas medidas merecem comentários aprofundados pela centralidade para a distinção entre defesa ativa e defesa passiva: a investigação defensiva e a produção de provas. Ademais, esses são esses os dois pontos fortes de uma defesa ao estilo Mickey Haller.

É um tipo de atuação que pressupõe uma equipe altamente qualificada e inteiramente comprometida. Não há atuação assim sem alguém que, como o Cisco, busca elementos e fontes incessantemente e sem medo dos perigos, e que, como a Lorna, pesquisa precedentes e estuda os casos de maneira compulsiva e detalhada – nada obstante os incontáveis estereótipos da série. Mickey é só a ponta de lança. Recebe um resumo de tudo, elabora a estratégia, pede o que precisa – não importa quão absurdo e impossível seja – e vai à luta. Uma argumentação potente e impecável, um terno alinhado, carros da marca Lincoln – eis o nome da série – e muita estratégia numa performance invejável.

A articulação de uma investigação e uma atividade probatória como essas, sem dúvida, garante uma defesa ímpar. Mas garante muito mais do que uma defesa. Nos principais casos da série, Mickey não só provoca a dúvida nos jurados, senão também apresenta os culpados.

Mickey é um misto de defensor e acusador que desempenha um papel triplamente funcional: (a) acaba com a necessidade de dúvida, fulminando a presunção de inocência na faceta in dubio pro reo; (b) assume para si a responsabilidade por evitar erros judiciários; e (c) entrega ao sistema penal os culpados.

Não por acaso, todas as reivindicações dos movimentos em defesa dos inocentes condenados resultaram na comunhão de esforços com as agências de persecução penal. O que se iniciou com as análises de DNA para exonerar inocentes condenados acabou com a criação de um big data de perfis genéticos utilizado para encontrar os “verdadeiros culpados”[19]. Frequentemente, aparentemente sem se dar conta, os defensores dos inocentes condenados acabam colaborando com as agências estatais na persecução de outras pessoas.

O papel ativo, ao fim e ao cabo, não é um papel de defesa, mas de acusação. Por motivos distintos e por meios diversos, as propostas reconduzem o defensor àquele papel assinalado no processo inquisitório – de auxiliar da persecução. Alteram-se a finalidade, encontrar o culpado ao invés de convencer o cliente a confessa, e o persecutor, acusador ao invés de inquisidor.

 

Considerações finais

 

Como se pôde verificar, é inviável qualquer tentativa equivocada de propor um “meio termo” entre o papel “passivo” e o papel “passivo”. As propostas de defesa penal efetiva, com seus desdobramentos probatórios – investigação defensiva, cadeia de custódia da prova defensiva etc. –, por melhor-intencionadas que sejam, servem de triplo pretexto para prejudicar os imputados: (a) invertem a carga probatória para a defesa; (b) terceirizam dos juízes para os defensores o dever de evitar resultados errôneos; e (c) elevam as exigências de provas (standard de prova) para absolver ao reduzir as dúvidas em benefício da acusação às custas da defesa.

Em última análise, como se viu, reconduzem a defesa ao papel de auxiliar da persecução.

Em outros termos, são todas propostas que retiram atribuições do julgador e do acusador, isentando-os ou, pelo menos, reduzindo-lhes a responsabilidade por eventuais erros. Assim, defesas inefetivas e erros judiciários se tornam, para todos os fins e efeitos, responsabilidade exclusiva da defesa. Não por acaso, por exemplo, nos Estados Unidos, por exemplo, por um lado, o standard de defesa efetiva (reasonably effective assistance) parte da presunção de efetividade da defesa[20], e, por outro, a Suprema Corte nunca afirmou inequivocamente que os inocentes têm direito a impugnar suas condenações errôneas[21].

A gravidade da situação é exemplificada pelos resultados das defesas de Atticus e Mickey. Enquanto Atticus pôde provar que Tom era inocente e, mesmo assim, teve seu cliente condenado, Mickey não só mostra quem é inocente como também quem é culpado, inclusive para além dos casos em que atua. Mas Mickey tem dinheiro, recursos e faz mágica. Atticus é “só” um advogado.

Por tudo isso, o papel “passivo” é o único compatível com a presunção de inocência e com um processo acusatório. Defender esse papel da defesa é, em última análise, defender à democracia.

 

Referências

 

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VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Trad. Ísis da Fonseca. Rio de Janeiro: Difel, 2002.

[1] Cf. Vernant, 2002.

[2] “distinção entre democracia real como constituição do corpo político e democracia como mera técnica de administração que se baseia em pesquisas de opinião, nas eleições, na manipulação da opinião pública, na gestão dos meios de comunicação de massa etc. A segunda versão, aquela que os governantes chamam democracia, não se assemelha em nada com aquela que existia no século V a.C.” (Agamben, 2014).

[3] Cf. Benjamin, 1986, p. 160-175.

[4] “Aquilo que me interessa nesse momento, porém, em contraste com a divina ‘violência pura e imediata’ evocada por Benjamin e de muitos de seus repetidores, é sobretudo o sistema de mediações – e das mediações impuras – através das quais a violência entrelaça a história: no direito, posto e conservado na ‘Gewalt’, há algo de podre… Etwas Morsches im Recht, em poucas palavras.” (Chignola, 2018, p. 7-8).

[5] “– e então descubro: sim, o jovem está doente. No seu lado direito, na região dos quadris, abriu-se uma ferida grande como a palma da mão. Cor-de-rosa, em vários matizes, escura no fundo, tornando-se clara nas bordas, delicadamente granulada, com o sangue coagulado de forma irregular, aberta como a boca de uma mina à luz do dia. Assim parece à distância. De peno mostra mais uma complicação. Quem pode olhar para isso sem dar um leve assobio? Vermes da grossura e comprimento do meu dedo mínimo, rosados por natureza e além disso salpicados de sangue, reviram-se para a luz. presos no interior da ferida, com cabecinhas brancas e muitas perninhas. Pobre rapaz, não é possível ajudá-lo. Descobri sua grande ferida; essa flor no seu flanco vai arruiná-lo.” (Kafka, 1994, p. 13).

[6] Tendo em vista que “um sistema processual se define pela gestão da prova e a quem ela cabe.” (Coutinho, 2018, v. 1, p. 138).

[7] “é falso que método inquisitório equivalha a processo sem ator: na Ordonnance Criminelle de 1670, monumento da engenhosidade inquisitorial, o monopólio da ação cabe aos hommes du roi (‘os processos serão promovidos a pedido e em nome de nossos procuradores’: Título III, art. 8).” [tradução livre] (Cordero, 1986, p. 47).

[8] Basta ver os comentários de Francisco de la Peña: “O crime de heresia é concebido no cérebro e fica escondido na alma: portanto, é evidente que nada prova mais do que a confissão do réu. Eymerich tem absoluta razão quando fala da total inutilidade da defesa. […] Se houver um advogado, ele tem que ser muito fervoroso, diz Eymerich. Será excluído da Igreja, e a fortiori, do Tribunal da Inquisição, todo advogado herege, suspeito de heresia ou com fama de herege. Deve-se ter a garantia de que o advogado é de boa família, de antiquíssimas raízes cristãs. […] se [o herege] continuar negando [a heresia], o inquisidor lhe atribuirá, automaticamente, um advogado juramentado no seu tribunal. O réu comunicar-se-á com ele na presença do inquisidor. Quanto ao advogado, prestará juramento – embora já seja juramentado – ao inquisidor de defender bem o réu e guardar segredo sobre tudo o que vir e ouvir. O papel do advogado é fazer o réu confessar logo e se arrepender, além de pedir a pena para o crime cometido.” [sem grifos no original] (Eymerich, 1993, p. 138-139).

[9] “Introspecção. Assim é definível o trabalho inquisitório. Óbvia a ideia e perverso o desenvolvimento: culpado ou não, o imputado sabe coisas importantes; transparecendo qualquer memória, o caso seria infalivelmente resolvido. É necessário que o analista lhe entre na cabeça, por qualquer rachadura possível. Essa semiótica não admite o irrelevante […] Mas são revelações superficiais: são necessárias as palavras, muitas, até que todo conteúdo psíquico venha para fora. Interrogado sob juramento, ‘reus tenetur se detegere’: a fórmula aparece já na ‘Summa totius artis notariae’ (ano 1255) […] Tradicionalmente considerada sintoma diabólico, a ‘taciturnitas’ é um revés para o inquisidor.” (Cordero, 2012, p. 23-24).

[10] (Goldschmidt, 1940, p. 20, tradução livre).

[11] Cf. Cordero, 1986, p. 47.

[12] “quanto mais parcial forem as partes, mais imparcial é o juiz (esse, sim, estruturado e constituído a partir da concepção jurídica de terzietà/imparcialidade.” (Lopes Jr., 2020, p. 367-368).

[13] P. ex.: Coutinho, 2001; Coutinho, 2009; Cani, 2019; Cani; Taporosky Filho, 2019.

[14] “Uma racionalidade ética, ou seja, uma racionalidade que tem sua origem no trauma em que se constitui o encontro com o outro, pode apenas ser concebida como real quando não é previsível em seu sentido propriamente dito a não ser na situação imprevisível e previamente irrepresentável do encontro mesmo. A racionalidade ética nasce, portanto, a cada momento em que um encontro verdadeiro tem lugar, e apenas aí; e é racional na medida em que se dirige não a alguma quimera, mas à realidade do encontro. […] é a ética a racionalidade original, que suporta e possibilita o pensar ao se pôr – ao se protagonizar – como sentido do pensar.” (Souza, 2016, p. 109).

[15] Cuja finalidade última é negar a diferença: “Nunca vi dois vizinhos se compreenderem: cada um se espanta da loucura e da maldade do vizinho. Sobre cada povo está suspensa uma tábua de valores. E vede: é a tábua do triunfo de seus esforços; é a voz de sua vontade de potência.” (Nietzsche, 2014, p. 76).

[16] “Eu sou uma das milhares de pessoas que provavelmente não teria frequentado uma escola de direito se não fosse pelo herói fictício de To Kill a Mockingbird, de Harper Lee, um livro que completou 50 anos em julho. Eu não estou sozinho nisso. O advogado de direitos civis, Morris Dees, do Southern Poverty Law Center disse que Atticus Finch é a razão pela qual se tornou advogado, e o nome disparou nos rankings de nomes populares de bebes nos últimos anos, sem dúvidas por causa do status do advogado correto entre os graduados em direito.” (Lithwick, 2010).

[17] Cf. The secret barrister, 2018, p. 41.

[18] Estados Unidos da América, 1895. Para mais detalhes: Cani, 2023, p. 174-180.

[19] Vid. Cani; Morais da Rosa, 2022; Cani, 2023.

[20] “o standard de defesa penal efetiva cunhado no caso Strickland v. Washington: assistência razoavelmente eficaz (reasonably effective assistance) que permite ao Tribunal partir da presunção de que a conduta do defensor é razoável” (Cani; Morais da Rosa, 2022, p. 73-74).

[21] Cf. HOLMES, 2001, p. 101.