Artigo dos sócios João Alcantara Nunes e Luiz Eduardo Cani, publicado no Boletim do IBCCRIM.
Resumo: Após o 11 de setembro, o Ocidente passou a introduzir inúmeras medidas consideradas de prevenção da criminalidade, dentre as quais estão a criação de agências e/ou a ampliação de serviços secretos. Tal fato se tornou notório com a publicação de informações sensíveis obtidas de Edward Snowden e publicada no WikiLeaks por Julian Assange. Desde então, ocorrem incontáveis tentativas de uso de informações de inteligência na persecução penal. O objetivo, neste artigo, é demonstrar que tais tentativas não têm amparo constitucional no Brasil.
Palavras-chave: Investigação criminal – Inteligência de segurança pública – Prova ilícita.
Abstract: After September 11, the West started to introduce numerous measures considered to prevent crime, among which are the creation of agencies and/or the expansion of secret services. This fact became notorious with the publication of sensitive information obtained from Edward Snowden and published on WikiLeaks by Julian Assange. Since then, there have been countless attempts to use intelligence information in criminal prosecution. The aim of this article is to demonstrate that such attempts do not have constitutional support in Brazil.
Keywords: Criminal investigation – Public safety intelligence – Illicit proof.
Argos Panoptes é o nome de um personagem da mitologia grega. De acordo com o mito, Argos era um gigante com o corpo coberto de olhos, o que permitia que dormisse com apenas metade dos olhos abertos, mantendo a vigilância constante. Assumindo a posição que se ocupa ao tratar do tema é que se afirmar, sem medo de errar, que se está diante de Argos.
Imprescindível constatar, inicialmente, que as atividades de inteligência são típicas dos serviços de defesa, não de segurança pública. Isso porque visam antecipar ações insurrecionais (atividade de agências de inteligência) e investidas de guerra (atividade de forças armadas).[i] A posterior incorporação de estratégias de guerra à segurança pública se deve, por um lado, à militarização das forças de segurança, e, por outro, a uma ampliação das estratégias preventivas contra criminosos e terroristas em potência.[ii] Daí as subdivisões das atividades de inteligência de acordo com as áreas às quais se aplicam (policial, de segurança pública, de defesa, etc.).
Na segurança pública, a inteligência vem sendo utilizada há algum tempo pelas Guardas Municipais e pelas Polícias Militares, nada obstante também sejam utilizadas pelas Polícias Civis e pela Polícia Federal. Os motivos são, por um lado, a infindável usurpação de atribuições, e, por outro, o contorno à delimitação das atribuições das polícias judiciárias. Ao realizar atividades de inteligência, as Guardas Municipais e as Polícias Militares efetivamente não usurpam as atribuições das Polícias Civis e Federal – nada obstante violem igualmente à Constituição.
Num primeiro olhar, pode parecer que inteligência e investigação são a mesma coisa, ou seja, algo rotineiro das forças de segurança. Mas isso é falso. As atividades de inteligência são realizadas sempre ante factum, com o objetivo de obter dados brutos que serão posteriormente convertidos em informações[iii] e, a partir destas, tomar decisões – não raro agindo de maneira a neutralizar uma ação (principal objetivo de todas as atividades de inteligência). A investigação é algo completamente distinto, pois é sempre post factum, constitui uma fase da persecução penal e visa obter elementos necessários para formalizar a acusação e requerer medidas cautelares (GIACOMOLLI, 2011, p. 50-51; LOPES JUNIOR; GLOECKNER, 2013, p. 90-91).
É certo que alguns países introduziram oficialmente uma nova fase na persecução penal, anterior à investigação, de modo a integrar legalmente a inteligência no iter da persecutio criminis, como ocorreu com as investigações preparatórias (inchieste preparatorie), um procedimento contra o crime organizado, na Itália. Entretanto, além dessa fusão entre atividade preventiva e atividade repressiva alterar a natureza da persecução penal (ORLANDI, 2021, p. 384), tal comistão é inadmissível no ordenamento jurídico brasileiro.
Ademais dessa distinção, há que se considerar que o texto do art. 144 da CRFB não deixa margem para algo como a inteligência de segurança pública ou a inteligência policial. Trata-se de limites expressos no texto constitucional, sem qualquer necessidade de recorrer a algum limite textual implícito (CANOTILHO, 1995, p. 1129), e sem possibilidade de inversões ideológicas desses limites tácitos a fim de invocar argumentos punitivistas para defender qualquer suposto limite à impunidade.
Dentre as instituições elencadas e as atribuições assinaladas à segurança pública não se encontra nada a respeito de atividades de inteligência. As referências expressas ao patrulhamento ostensivo (art. 144, §§ 2º, 3º, 5º, da CRFB), à preservação da ordem pública (art. 144, § 5º, da CRFB) e à prevenção do tráfico ilícito de entorpecentes, do contrabando e do descaminho (art. 144, § 1º, II, da CRFB) são insuficientes para que se fale em atividades inteligência.
A disposição mais vaga trata da prevenção ao tráfico, ao contrabando e ao descaminho pela Polícia Federal. Todavia, não menciona expressamente os modos de execução das atividades de prevenção, o que implica em dizer que, tratando-se de atividade estatal, não se pode interpretar omissões como restrições a direitos fundamentais por meio de práticas não expressamente reconhecidas. Isso porque as atividades estatais, dentre as quais a persecução penal, precisam ser realizadas nos estritos limites da legalidade (art. 5º, II, da CRFB).
O regramento geral da persecução penal está previsto no Código de Processo Penal, cujas exceções e especificações estão previstas na legislação extravagante. Tais disposições complementam, sem inovar, as diretrizes constitucionais relacionadas à investigação e ao processamento de crimes.[iv]
As atividades de inteligência, por outro lado, são regradas pelas Leis 9.883/1999 e 13.675/2018. A primeira, institui o Sistema Brasileiro de Inteligência e cria a Agência Brasileira de Inteligência. A segunda, cria o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social e institui o Sistema Único de Segurança Pública. Entretanto, a pretexto de disciplinar a organização e o funcionamento da segurança pública nos termos do art. 144, § 7º, da CRFB, a lei mais recente introduziu as atividades de inteligência dentre o rol das atribuições da segurança pública, em nítida tentativa de naturalizar a incorporação das atividades de inteligência no rol das atividades de segurança pública e, desse modo, esboroar as fronteiras entre uma e outra.
Ainda mais problemática é a existência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, instituído no art. 14 da Lei 9.631/1998, cuja redação, desde a versão original, assinala atribuições de recebimento, exame e identificação de ocorrências suspeitas de atividades ilícitas. Trata-se de uma difusão das atividades de inteligência para órgão administrativo sancionador, com potencial de uso posterior na persecução penal, inserindo-se no contexto de ressonância entre administrativização do Direito Penal e penalização do Direito Administrativo ou, o que quer dizer a mesma coisa, de um esboroamento das fronteiras entre Direito Penal e Direito Administrativo. Em qualquer caso, está-se diante do risco de “deslegalização do Direito Penal” (FALAVIGNO, 2021) e também do processo penal.
O assinalamento de atribuições de inteligência para órgãos de segurança pública é nitidamente marcado por inconstitucionalidade material decorrente, por um lado, da usurpação de atribuições das forças de defesa, e, por outro, da introdução de atribuições de guerra em face de cidadãos, no interior do território nacional, em pleno estado de paz. Diversas tentativas semelhantes estão descritas e prescritas na história das ideias penais, dentre as quais a mais conhecida no Brasil talvez seja a cisão entre Direito Penal do inimigo e Direito Penal do cidadão (JAKOBS; MELIÁ, 2009, p. 19-48).
A usurpação de atribuições entre instituições de segurança pública já é parte do cotidiano. Nada obstante tal usurpação, os Tribunais Superiores vêm consolidando a jurisprudência contrária a tal movimento. Por exemplo, a usurpação de atribuições de policiamento ostensivo e repressivo pelas Guardas Municipais é frequentemente declarada ilícita (STJ, HC 561.329 e 667.461; STF, RE 1.281.774). Outro exemplo, quiçá o mais famoso, é o da Operação Satiagraha, na qual oficiais e agentes de inteligência da ABIN auxiliaram a Polícia Federal na utilização de grampos telefônicos, o que resultou na declaração de ilicitude das informações produzidas pelas arapongas (STJ, HC 149.250). Ressalta-se: ainda que fosse admissível o aproveitamento de resultados cognitivos oriundos da coleta e depuração de dados úteis à tomada de decisões, as informações produzidas seriam inúteis se não fossem estruturadas em relatório técnico (STF, HC 512.290).
Note-se que a incorporação de informações produzidas em atividade de inteligência, ademais de desnaturar a investigação em inteligência, dá-se extra autos dos procedimentos investigatórios oficiais e sem a documentação correspondente, o que, no mínimo, caracteriza uma burla ao controle judicial da legalidade dos atos administrativos. Trata-se de uma atividade completamente estranha ao inquérito policial (cujo regramento deve ser aplicado subsidiariamente a qualquer outro procedimento investigatório na condição de regras gerais de investigação) e, consequentemente, ilícita.
A ilicitude, é preciso consignar, não é probatória, pois, como se sabe, não é de prova que se trata na fase preliminar, mas de elementos de investigação (LOPES JUNIOR, 2020, p. 405). Se uma investigação não culmina na produção de provas – salvo no caso de produção antecipada –, é certo que a inteligência, que sequer investigação é, não pode, em nenhuma hipótese, produzir provas.
Não é possível saber quais informações foram obtidas pelas forças de segurança e nem por quais meios foram obtidas. Portanto, a persecução penal que se utiliza de informações produzidas em atividades de inteligência é desvinculada da legalidade sem a qual não pode ser admitida. Isso porque a legalidade, pilar de sustentação dos Estados de Direito, é uma dupla garantia para os cidadãos: por um lado, garantia de que não será proibido de fazer algo senão por meio de lei, segundo, garantia de que o Estado só pode agir nos estritos limites da legalidade.
Ademais, a legalidade, como é cediço, produz imposições de mão dupla: impede os cidadãos de fazer o que for proibido ou limita o agir, ao mesmo tempo, impede que o Estado faça algo não previsto em lei. Desse modo, são desenhados os contornos das liberdades fundamentais.
Consequentemente, são ilícitas todas as informações obtidas em atividade de inteligência, seja qual for a modalidade (de segurança pública, policial, de fontes abertas, etc.), para fins de persecução penal, razão pela qual devem ser inadmitidas, desentranhadas e inutilizadas, seguindo-se pela substituição do magistrado que delas conheceu, nos termos do art. 157, § 5º, do CPP.
Por fim, há que se consignar que eventuais propostas de emenda à Constituição para incluir as atividades de inteligência no rol de atribuições de quaisquer das instituições do art. 142 e/ou art. 144, para fins de persecução penal, acarretará em restrição a direitos e garantias individuais, o que é vedado (art. 60, § 4º, IV, da CRFB). Ainda que topograficamente tais dispositivos não estejam elencados no capítulo I do título II do texto constitucional, a atividade de persecução penal toca direta e imediatamente nas liberdades fundamentais de
[i] Vide: (NUNES, 2021, p. 8-9).
[ii] “Creio que é sempre na perspectiva de Tiqqun sobre a guerra civil em curso que se torna compreensível a extensão, a toda população, da aplicação de medidas biométricas que foram concebidas inicialmente para o criminoso reincidente. […] Portanto, todo cidadão é tratado como criminoso ou terrorista em potencial, em potência. […] se o Estado nos trata como criminosos ou terroristas em potência, não devemos nos espantar com o fato de que quem se recusa a submeter-se ou denuncia esse estado de coisas seja tratado, justamente como terrorista.” (AGAMBEN, 2019, p. 265).
[iii] “O ‘dado’ significa algo mais primitivo, uma informação em estado potencial, antes de ser transmitida, anterior ao processo interpretativo […]. A ‘informação’ é algo […] já no limiar da cognição, pressupondo-se com um meio de redução de um estado de incerteza.” (MARTINS JÚNIOR, 2015, p. 30).
[iv] Não se entrará na discussão sobre a duvidosa constitucionalidade das contravenções penais.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. A propósito de Tiqqun. In: TIQQUN. Contribuição para a guerra em curso. São Paulo: n-1 edições, 2019. p. 265.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1995.
FALAVIGNO, Chiavelli Facenda. A deslegalização no Direito Penal brasileiro: discussões dogmáticas. Revista Inclusiones, v. 8, n. especial, p. 70-82, 2021.
GIACOMOLLI, Nereu José. A fase preliminar do Processo Penal: crises, misérias e novas metodologias investigatórias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manual Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
LOPES JUNIOR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no Processo Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
MARTINS JÚNIOR, Ayrton Figueiredo. Atividade de inteligência: uma proposta de controle judicial. 2015. 152 f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.
NUNES, João Alcantara. Diagnóstico da inteligência de fontes abertas para fins de persecução penal no contexto da sociedade do controle. 2021. Monografia (Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.
ORLANDI, Renzo. Investigações preparatórias nos procedimentos de criminalidade organizada: uma reedição da inquisitio generalis? Trad. Ricardo Jacobsen Gloeckner e Luiz Eduardo Cani. In: TERRA, Luiza Borges. (Org.). Lições contemporâneas do Direito Penal e do Processo Penal. São Paulo: Tirant lo Blanch Brasil, 2021.